terça-feira, 20 de março de 2012

Carta.

O texto a seguir é fruto de um "exercício de criação literária" da disciplina de Estudos Literários III - Literatura,  Memória e Subjetividade, ministrado pela Professora Doutora Tânia de Oliveira Ramos no curso de Letras - Português da UFSC.
A ideia básica do exercício fora criar uma narrativa de cunho memorial, esse texto deveria partir da perspectiva feminina da personagem "Conceição" do conto "Missa Do Galo", de Machado de Assis.





Rio de Janeiro, 24 de Dezembro de 1869.


Senhor Nogueira.
Muitos anos se passaram desde nossa última conversa. Lembro-me claramente de cada instante daquela noite, sim, as circunstâncias eram outras e fomos, de súbito, interrompidos pelo horário da missa. Pensemos o quão irônica é a vida, cá estou, oito anos passados, escrevendo-lhe, pois recordo-me como se fosse ontem.
Prendia-me, naqueles tempos, às pudicicias de uma dama, claramente não seria capaz de descrever a qualquer outra pessoa todas as sensações daquela noite. Os tempos eram outros, mas tudo se faz diferente, daquele dia os tempos vindouros semearam a paz do meu espírito e desfizeram as correntes que me prendiam.
Enquanto escrevo, me questiono constantemente sobre quais seriam os pensamentos que terás, posso afirmar, de forma primeva, hoje sou viúva, essa talvez seja a mais forte razão pela qual te escrevo, não me encontro mais banhada pela vergonha dos adultérios de meu falecido marido, sou, de certa forma, livre. Mas peço que poupes os julgamentos.
É bem verdade que naquela noite, meu marido se ausentara para seu passeio no “teatro”, mesmo consciente dos adultérios, afoguei todo o ciúme e a angústia em um poço e o tampei com uma pedra. Porém, chegaste e me deste atenção, me senti como envolta em teus braços, naquele momento eu era sua e seria capaz de fazer tudo o que me fosse pedido. Enquanto minhas mãos apoiavam minha cabeça, eu o fitava como um príncipe capaz de me resgatar, fora como uma paixão arrebatadora duradoura de apenas alguns momentos.
Ainda me lembro do meu manto pudico, das máscaras de outrora, também me lembro do desenho dos teus lábios, lembro-me do desejo de querer ser sua; temo tais palavras, caminho sobre um terreno bastante complicado, o desejo. Mas eu imaginei, Senhor Nogueira, imaginei tuas mãos tocando meus joelhos, tua boca tocando minhas mãos. A missa daquela noite fora diferente, me encontrava emersa em um líquido pecaminoso chamado desejo, daquela noite em diante eu não merecera mais nome de santa, mesmo não me arrependendo jamais de tais ímpios pensamentos. Fui frívola, bem sei, mas resguardo a mim o sentimento de ter desejado o senhor.
Hoje não posso reclamar da vida, fui afortunada ao te conhecer, percebi o quanto me prendia aos conceitos pré estabelecidos desta sociedade criada por homens, é raro perceber isso até recostar-se no leito de morte. Sim, a tuberculose tocou meus pulmões, creio que, também, agravada pela sífilis passada a mim pelo finado meu marido. Desejo a ti uma vida longa e próspera, rogo para não seres tocado por terríveis enfermidades e rogo, também, para que, de alguma forma, sempre tenhas alguma recordação daquela
noite. Já é hora da missa, no entando não conto nem com a tua presença, nem com saúde suficiente para rezar. Lembre-se de mim como aquela a ter coragem de escrever tal carta, não como a moribunda que não teve coragem de tomá-lo nos braços.


Com carinho,
Conceição.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Espólio


Talvez seja necessário, em toda a sua aleatoriedade, transformar em escritura pensamentos outrora traçados. Entretanto a persuasão das idéias, é, em demasia, apenas interlocução de memórias previamente estabelecidas.
“Memória” é apenas um termo tão vulgar quanto o retrospecto que é delineado sob o véu da libido. A divagação apenas se constrói sobre a relação completamente binária entre memória e esquecimento. Milan Kundera previamente advertiu a todos quanto a necessidade do esquecimento. - o afã de caminhar para longe de uma memória; e é assim que funciona, quando algo ruim acontece, tenta-se, das mais desesperadas formas, correr para longe, “esquecer”.
O julgamento pode ocorrer, através da leitura, apenas embalsamado pela  “estrutura de tudo”, porém, a busca não é por lógica, sentido ou estrutura, inversamente contrária, nesse efeito, a busca pela lógica é inexistente, pois não há padrão nas memórias, tampouco estruturas tangíveis.
A imagem sempre foge aos limites da mente; assim que a imagem é narrada, se é dado fim à toda reminiscência. O fato apenas torna a ocorrência tangenciável, então as paranóias da memória se transmutam em seres autônomos capazaes de despertar, em momento ruins, o ideal de acalento – Mnemosine e suas artimanhas.
O desesperado rugir da fuga embeleza-se por entre as memórias e esconde-se entre as mais belas árvores de folhas vermelhas e olhos cravados no tronco, outra vez a fuga contempla-se como ideal artístico e emudesce, fustigada pelo eterno referencial. E a memória se desfaz, eleva-se no espaço/tempo e cria outra atmosfera, essa atmosfera representa a busca doentia e atroz, a lembrança, pois é o unico espólio da vida.