segunda-feira, 2 de abril de 2012

Memória [enfumaçada].


Mais uma vez me pego sem sono. Ébrio pela insônia paro e penso sobre constantes coisas e tantas outras coisas determinantes e indeterminantes na vida. De uma forma, ou de outra, acabo chegando nunca a um denominador comum ou a uma conclusão plausível sobre qualquer assunto. A temática é perversa e cruel, sempre desdobra-se sobre o entreposto sentimental e nunca dá real espaço para uma saída estratégica que me leve, de forma direta, ao sono profundo e acalentador.
Foi em uma noite assim: o céu estrelado e a lua brilhando pela janela, mais uma noite ouvindo “Solsbury Hill”. Mais uma noite de atordoamentos providos pelo âmago ébrio e solitário que em mim encontra-se alojado.
Assim, percebo certas coisas, coisas certas e coisas incertas, pesares amplamente não especificados, todos apenas escondidos sob o véu de todas as artimanhas do passado e de todas as incertezas do futuro, sem falar, claro, de todo o mistério que envolve o presente.
Diferente de toda a significação de qualquer exercício previamente descrito, deixo de lado o enunciado prescritivo e penso em uma pequena divagação posterior a uma pequena introdução, claro, para todo o sentido ser plenamente claro, eu deveria, supostamente, começar esse texto dizendo “Jamais esquecerei do dia em que...”, mas subverto a norma, felizmente o poder concedido a mim, narrador desse pequeno texto, me é garantido o poder de começar como bem entendo, ou não; pode ser que esse seja apenas eu enganando a mim mesmo, crendo ter algum poder sobre qualquer lógica ou razão, por mais ilógico ou irracional que o poder seja. No entanto, não passaria de uma simples divagação se assim o poder a mim concedido provisse ao ardor da tecitura de um texto sem sentido e sem razão alguma de existir.
Jamais esquecerei do quão complexo é o poder de todo e qualquer pensamento, assim como jamais esquecerei do dia em que fumei meu primeiro cigarro. Sim, um cigarro, um pequeno objeto, a leve fumaça e um turbilhão sinestético.
Lembro-me de tal fato, pois, de fato, o último cigarro terminara de queimar instantes atrás, ato tolo, sim; desprovido de sentido? Não.
Mais uma vez, tento manter a ordem sobre toda a conjuntura dos pensamentos que me acometem desde o momento em que a chama acende o cigarro até o momento final. Jamais esquecerei o dia em que fumei meu primeiro cigarro, primeiro de muitos, claro; nesse dia eu tracei o que seria, futuramente, minha maior perdição e minha salvação, talvez meu consolo na busca pela sanidade. Enfim. A regra sempre permite uma excessão. Fora logo após o sexo, por meses havia a mesma oferta, corpos saciados, desejo e anseio pela mesma sensação que apenas a nicotina é capaz de prover. Naquela noite a regra teve sua excessão, não recebi a oferta, me senti, de certa forma, abismado com a sensação da necessidade de ver o mesmo gesto; ali, naquele instante, de forma insana eu precisava de um cigarro.
Diferente de todas as outras vezes: minha vez, eu pedi o cigarro; clamei pelo direito de ser ofertado, clamei por um pequeno e vulgar gesto. O segurei entre os dedos – confesso que receoso – tomei o isqueiro e o acendi. Primeiro o leve engasgar, depois uma sensação que eu jamais serei capaz de descrever, seria como tentar criar uma réplica de alta qualidade da Barca de Dante, de Eugène Delacroix, com os olhos fechados, sem modelo e pintando com os pés. Próximo a isso, creio eu.
Senti-me envolto por um suave mar em forma de neblina, ou apenas neblina, a fumaça é tóxica, todos sabem. Não foi um trauma, não foi uma experiência negativa, finalmente eu pude sentir o prazer que por anos eu ouvi todos os fumantes tentaram descrever. Qualquer descrição era apenas um emaranhado de fumaça pairando sobre suas mentes nicotinadas.
Para mim, o ato de fumar sempre demonstrou charme, luxo, estilo. Claro, todos os esteriótipos que a indústria do tabaco queria impor aos fumantes, impôs a mim, também, não os julgo, os julgo, na verdade, em demasia inteligentes; conseguiram fazer coisas que ninguém jamais fora capaz de fazer. Cada um recebe por aquilo que planta.
O ato não findou-se por aí, lembro de ter fumado outros cinco ou seis, logo em seguida. Qual o objetivo? Qual a análise tão profunda sobre um ato recalcado por anos? Não há objetivo, assim como não há análise alguma. Tudo apenas é outro simulacro criado pela mente perturbada, eu poderia pensar em milhares de motivos para tentar convencer todos a fumar, mas para mim, será inesquecível a sensação, o prazer. O gesto, hoje em dia, tornou-se muito mais nostálgico e saudosista, tornou-se um prazeroso hábito. Muitas vezes, o cigarro, assim como o sexo, apenas contagia o corpo por alguns instantes, poporciona fulgor à alma, intercala o demasiado prazer à demasiada necessidade. Qual o fruto de tudo isso? Qual a razão para, constantemente, levar um cigarro à boca?
A resposta encontra-se previamente formulada em qualquer língua fumante, para qualquer pessoa conhecedora do prazer de um pequeno cigarro a resposta é simples, mesmo que obscura, o cigarro dilata o espaço-tempo, cria uma espécie de câmara que possibilita em aproximadamente cinco ou sete minutos pensar sobre uma vida inteira, uma série de atitudes e gestos que, sem ele, seriam simplesmente inimagináveis. Complexa a forma de pensar, sim, incoerente, jamais. Pelo menos para mim.
Então, qual a razão para ser inesquecível? Será um trauma de infância?
Nem todo o trauma deveria ser pensado de forma negativa, pelo menos eu penso assim, hoje sou capaz de refletir sobre indeterminadas quantidades de coisas que outrora eu jamais fora. Destarte sou capaz de usufruir das minhas próprias divagações, também sou capaz de perceber que não sou adepto às mais derivadas teorias de que o cigarro apenas faz mal, tudo bem, ele não é de um todo saudável; ele faz bem a mim.
O grande sarcasmo desse cenário chamado vida é a simples persuasão de todos os fatos, existe razão para pensar no cigarro, quando milhares de outras ideias simplesmente brotam aos dedos? Não. Não há razão alguma. Seria irracional apenas perceber o amplo sentido de um texto de caráter reminiscente. Porém há um vazio inóspito, consideravelmente grande, e capaz de atribular o mais pacífico de todos os pensamentos.
Meu primeiro cigarro será inesquecível, assim como aquela noite, assim como todo o prazer a mim concedido naquela noite. A sensação do inesquecível também não será esquecida, por mais que seja uma sensação comum e corriqueira, é impossível esquecê-la, ela apenas encontra-se fadada dentro de outras sensações. E o cigarro? Continuou queimando durante toda a escritura desse texto, tornando-o, também, inesquecível.