sábado, 2 de agosto de 2014

Kajra Re

Do nada o vinho ocre avinagrado voltou a ser doce, doce púrpuro nesse ar tão perfumado de jasmim que respiro. E são tantas coisas para escrever, falar, gesticular, me prendo à poucas e tento manter-me conciso, desgraçada tarefa da síntese onde me perco na extensão do teu corpo, na profundidade dos teus beijos e na imensidão do abraço, por isso não sintetizo mais nada, quero a fissão nuclear dessa energia tão avassaladora e profunda que me impulsionou do tédio e preencheu o vácuo existencial com tanta jovialidade. Mas, nisso, não me importo de ficar perdido entre tantas palavras e coisas e coisas e mais coisas e outras palavras, nesse respirar profundo de terminar uma sentença.
Aliás, um respirar profundo do aroma de jasmim a invadir meu quarto, minha cama, meu mundo, minha vida; esse aroma esgueirado pelos cantinhos, pequenino e ágil me deixa ofegante ante gemidos e suspiros; dos olhares e dos paladares. O gosto doce do recheio com o qual lambuzo a boca toda sugando cada gota.
É bonito e combina com Paris, algo misto entre azul violáceo e vermelho do vinho, não sei bem explicar, mas é bonito, porque uma mesa e um banco retém uma história. Eu caminho todas as noites pela mesma rua, volto pra casa com a sensação de plenitude, completude, também não sei explicar, sou péssimo com definições – gosto de ser assim -, a mesma rua que já me viu prantear e suspirar profundo, hoje me vê sorrindo bobo e balançando meu guarda chuva, ou melhor, minha bengala imaginária, daquelas usadas em Paris antigamente, é, esse amontoado imaginário onde, sob ele, podemos tudo, nem que seja parar no meio da rua e trocarmos um beijo enquanto o temporal mostra suas garras. Não me importo muito de me molhar.
O disco roda à 33 rpm e o tempo para, tudo derrete, se faz, refaz, torna a moldar um circunspecto infinito da tua presença e o tudo simplesmente cede à paz. E eu furo o disco ouvindo Peter Gabriel, tomo um gole, ou dois de vinho, a fumaça se dissipa e eu te vejo por entre as brumas da rua, uma beleza primaveril no inverno cortante. Sigo
me perdendo nestes tantos pensamentos onde tu te esgueiras e os invade de forma tão serelepe, como uma criança pulando poças d’água pela rua ou não pisando nas linhas dos ladrilhos, pra não morrer. Essa jovialidade, esse sopro jovial também invade cada parte do meu ser e me retira do profundo da clausura, tanto me apetece que sempre espero pela próxima vez.
Não temos Paris agora, mas poderíamos ter, mas quem se importa, na verdade, quando, no fundo, construímos um pequeno universo tão repleto de tantas coisas. Um dia, sob a lua, às margens do Sena, será possível ver todas as luzes da cidade e caminhar pelos boulevares, passagens, nos esgueirarmos pelas passagens secretas da velha Paris, sentar e tomar um café, ver rinocerontes, bebericar um gole ou dois de vinho, esse vinho doce que tu trouxeste de volta à minha boca.
Então eu olho pela janela e admiro as brumas da madrugada enquanto a fumaça evanesce e se perde na bruma desse inverno tão aconchegante e repleto de acalentos, este movimento perspicaz dos meus dedos a narrar tantas coisas, frenesi de uma cabeça tão repleta de pensamentos, informações, coisas, planos e mais planos. Nos fragmentos de tudo que sou, tenho em mim algo inteiro. Um.