Aventureiros ou, também chamados, ladrões de tumbas
sempre faziam suas riquezas nas épocas de intensa enfermidade, alguns eram
nobres e outros apenas compunham a grande massa, os pobres. Talvez, se a
prostituição é a mais antiga forma de trabalho para a mulher, com quase toda a
certeza, o roubo o era para os homens.
Afora
bandidos comuns, aqueles desprovidos de audácia e técnicas de subterfúgio,
existiam os ladrões que possuíam algum tipo de especialidade, um desses grupos
eram os ladrões de tumbas. Estranho pensar dessa forma, mas a época
conceitualizou bastante o grau de dificuldade e “nobreza” desta “profissão”. Os
padres, figuras representativas de Deus, detinham o poder sobre as mentes e
riquezas de quase todos. O misticismo ordenava a vida das pessoas; tumbas,
sarcófagos, mausoléus eram, praticamente, lugares amaldiçoados. Os nobres eram
sempre enterrados com suas jóias e em seus mausoléus repousavam seus pertences
mais valiosos, é nesse ponto que começa a história.
Johnnie
era um destes andarilhos, nasceu sob o véu da pobreza, tinha seu pai com os
olhos vazados e sua mãe provia o alimento de uma pequena horta no fundo da
casa. Os feudos exarcebavam todo seu poder e riqueza, os nobres
enclausuravam-se em seus aposentos, pois temiam a praga e os plebeus.
Aos
dezoito anos completos, Johnnie perdeu
seus pais para a praga. Enterrados em cova rasa – por sorte, pois muitos não
tinham tamanha benção e eram empilhados dentro de um buraco - , o
(sobre)vivente não tinha mais escolha, o mundo devastador e cruel o chamava
para a morte. Como a maioria dos pobres, não tinha instrução alguma, contava
apenas com seu grande porte, sua perspicácia e seu carisma, as únicas armas
que, no momento, nosso herói dispunha, além de um pequeno punhal, contudo, de
fato, nem como arma o pedaço de metal podia ser classificado.
Com a
Europa, quase em sua totalidade, devastada pela praga, empregos já não mais
existiam, as poucas mulheres saudáveis vendiam seus corpos por qualquer moeda
de ouro e os soldados temiam por invasões.
Em uma
taverna quase vazia, um homem encapuzado estava sentado em um dos cantos,
fumava de um cachimbo longo e curvilíneo, ninguém o conhecia e muitos o temiam,
de fato a aparência era assustadora. O homem tem sua atenção chamada enquanto o
rapaz adentrava o lugar.
-
Sente-se aqui, rapaz. Anda, senta. É seu tipo mesmo que procuro.
- Meu
tipo? O que queres? Não o conheço.
O
sorriso carregado de ironia já era prelúdio do que esperava o jovem. Não que um
sorriso carregado de ironia sempre esconda más intenções, mas com certeza boas
não eram.
- Nomes
não interessam, meu jovem. Apenas quero lhe oferecer um trabalho honesto. Os
tempos são negros e, pelo seu jeito, não tens de onde tirar o pão para comer.
Qual trabalho não é honesto quando se trata de encher a barriga?
Adiante
da conversa, pois não se faz tão necessária. Mesmo com um porte majestoso, o
rapaz teve qualquer erudição e boa retórica ceifadas pela pobreza... Johnnie
consternado com a oferta segue seus pensamentos e se despe de toda sua
pudicícia e medo. O homem tinha razão, em tempos de doença e fome nenhum
trabalho é desonesto. Mas a idéia de violar o templo dos mortos lhe soava por
demais macabra, claramente, com criação católica um menino temente a Deus, em
sã consciência, não aceitaria sem mais demoras tal idéia. – O dinheiro
falara-lhe mais alto.
Incumbido
de sua primeira “missão”: As pérolas da condessa. Para Johnnie tudo parecia
simples, superados os medos, era apenas entrar no mausoléu, abrir o caixão,
retirar do pescoço da falecida as pérolas, sair sem deixar rastros e o dinheiro
saciaria sua fome.
Chegada
a noite do grande momento, os mais nefastos pensamentos tomavam conta da cabeça
deste herói. O medo causava repulsas, a vontade de vomitar era constante. O
temor de cemitérios lhe era constante à luz do dia, quem dirá a noite, momento
em que as almas estão à solta.
O
cemitério era grande e repleto de mausoléus, no caminho algumas sepulturas
violadas, esqueletos revirados sob a terra, ratos; cada ícone desta moldura era
um peso na balança do terror. O céu estava nublado e havia prelúdio de chuva. O
ladrão novato seguia firme, poupava-se dos tremores que os ratos lhe causavam,
andava pelas sombras e o mais rápido que podia. O coveiro morava em um casebre
ao lado do cemitério e essa era uma das preocupações mais salientes.
Após
alguns minutos de caminhada, Johnnie chega ao passadiço do mausoléu. O tamanho
do lugar era maior do que a casa em que viveu sua vida inteira, - antiga casa,
pois depois do passamento de seus pais a casa havia sido queimada, afim de não
restar nada da peste. A arquitetura gótica do lugar causava-lhe pânico, por
anos a igreja lhe serviu de abrigo dos invasores, e agora ele é o invasor.
Empurrou a porta. Ao adentrar o recinto sentiu um agradável aroma de lírios e
jasmins que enfeitavam a sepultura da condessa, inebriado, o ladrão percorre os
quatro cantos do mausoléu. Aturdido pelo aroma e beleza do lugar, senta-se no
chão e divaga sobre as belezas da nobreza.
Findada
sua divagação, ele levanta e observa o caixão por alguns minutos. Admira a
beleza de todas as coisas que a riqueza provém. Estático pensa se o que estava
a fazer é certo; afasta os pensamentos e mantém seu foco no que lhe é,
realmente, importante.
Abre a
tampa do caixão, o frio permitira ao corpo manter-se inteiro, não havia mau
cheiro; sob a mortalha o semblante mais se assemelhava a imagem de uma boneca,
tamanha era a perfeição daqueles traços, o cheiro da pele, as roupas. A pele
branca facilmente confundir-se-ia com o branco dos lírios e jasmins que
enfeitavam o mausoléu. Ele não conseguia desviar o olhar daquela beleza
encantadora, jamais vira uma dama tão linda, jamais fitara tamanha beleza. Seus
pensamentos voltaram-se apenas para a serena nuance daquela bela que logo após
ser desposada padeceu à febre.
O
desvario do rapaz se torna visível às almas penadas que por ali caminhavam, uma
sensação tomou conta daquele corpo, até então, inocente. Não resistindo ao
impulso, Johnnie toma nos braços a defunta beijando sua tez, o pescoço. Coloca
o sudário no chão e repousa o corpo sobre o tecido. Se despe das roupas – o
frio não era mais problema agora – retira vagarosamente cada peça de roupa da
falecida; absorto pela visão daquele magnífico corpo, se entrega aos beijos
incansáveis. Fora como se a vida tangesse novamente a condessa que, nos braços
daquele necrófilo punguista, tinha sua morte violada e seu ventre preenchido
pelo líquido seminal de um ladrão.
Debruçado
sobre o corpo da condessa, ainda sofrendo de tremores, o necrófilo desvairado
retoma a plenitude de suas faculdades mentais – que de plenas só possuem a
insanidade – e percebe seu louco desvario. Foi como se a peste o acometesse,
como se o fel se derramasse sobre seu sangue e tocasse o cérebro; despido,
incontrolável. O jovem padecia sobre seu próprio veneno.
Inconformado
com tamanha atrocidade saca o punhal herdado do pai, desfaz-se de sua própria
vida... Seu sangue inebriado em volúpias se esvai. Suas últimas palavras: - Ao
lado da única que amei.
Talvez
pareça tolo, mas é fato que essas atitudes eram comuns entre os ladrões de
tumba, muita vezes o frio acalmava a peste e mantinha corpos intactos. Era a
maneira de saciar a libido e esconder-se da inquisição, pois essa nem os
julgava, apenas condenava a fogueira. Pouco se sabe sobre estes ladrões, a fama
não passava de algo escondido sob os tapetes de um submundo criminoso
instaurado na época, nomes jamais eram revelados. Grande perda para a história,
pois quando a peste negra atacou a Europa, além dos nobres, eram os ladrões e
as prostitutas que moviam a economia.