Diante do espelho tua imagem repousava calma e imperiosa. Os
traços borrados no reflexo iluminavam o torpor do ambiente repleto de vapores.
No divã, deleitava-se em tua plena forma sublime em teus olhos descobertos, do
outro lado eu a admirava em plena forma. Há anos tua imagem era apenas uma
forma encoberta no lusco-fusco da eterna espera, sublimava tua forma aos meus
mais doces desvarios. Eras apenas o reflexo envolto na mais bela pele e dona do
mais sublime dos perfumes.
Não tardei a te reconhecer, Vênus; Ticiano não seria capaz
de pintar tão perfeitamente os detalhes da tua alma da forma como eu vislumbro
as mais tênues das partes que te formam. Com o passar dos anos tua imagem se
tornava um mistério cada vez maior e, proporcionalmente, aumentara a angústia
por descobrir tua real forma. Então, ante tua beleza estonteante, retiraste o
véu que cobria teus olhos e te mostraste a mim, tua imagem desconcertante me
deixou sem fôlego, reparei enfim quem era a musa a guiar a pena enquanto
eternamente escrevia a ninguém.
Perante às máscaras escondi meu rosto, escondi as marcas
invisíveis que teus amores traziam às minhas madrugadas veladas na incessante
espera pelos teus beijos e carinhos. Então, no resfolegar trôpego da natural
embriaguez, nossos caminhos se cruzaram, tuas mãos tocaram as minhas enquanto
tuas palavras ecoavam pela minha alma. Teus dedos cauterizaram as feridas da
alma, teus licores embriagaram meu coração em amores e carícias.
As pantomimas ausentaram-se frente à realidade expandida da
tua presença, a névoa dissipou-se no calor do teu corpo junto ao meu. Eis a magia onde curamos nossas feridas,
Ticiano teria orgulho de mim ao ver como te retratei. No frio, teu casaco
acalentou a alma que tanto te procurava em meio à poesia, teus versos quando, a
mim, mostraste quem realmente és...Ora, dilúvios não me afastariam de ti.
Aquela a quem pintei sem ao menos saber quem era, minha plena idealização do
amor, tu, minha Vênus.
Ao teu lado caminho compassado, o ébrio torpor agora
desfolha risos e um mundo apenas nosso, esse mundo ausente da tristeza de
outrora, refletiu na matéria pura pulsátil a forma tão clara quanto o verde do
mar a alegria a vibrar na fibra. A dor que enlaça o espírito à dor vivente
transmutou-se na mais plena sintonia de harpas angélicas, nesse mundo habitado
por nós dois, nunca uma longa conversa fora tão agradável. Eis a união
metamórfica das metades, lugar onde o inteiro apenas desdobra sua imensidão no
leito das nossas volúpias ou no riso infindável do amor. Revelaste a mim, minha Vênus, tua forma sob a
mais bela pele adornada no encarnado do espírito. Minha Vênus, minha Vida.