Do nada o vinho ocre avinagrado voltou a ser doce, doce
púrpuro nesse ar tão perfumado de jasmim que respiro. E são tantas coisas para
escrever, falar, gesticular, me prendo à poucas e tento manter-me conciso,
desgraçada tarefa da síntese onde me perco na extensão do teu corpo, na
profundidade dos teus beijos e na imensidão do abraço, por isso não sintetizo
mais nada, quero a fissão nuclear dessa energia tão avassaladora e profunda que
me impulsionou do tédio e preencheu o vácuo existencial com tanta jovialidade.
Mas, nisso, não me importo de ficar perdido entre tantas palavras e coisas e
coisas e mais coisas e outras palavras, nesse respirar profundo de terminar uma
sentença.
Aliás, um respirar profundo do aroma de jasmim a invadir
meu quarto, minha cama, meu mundo, minha vida; esse aroma esgueirado pelos cantinhos,
pequenino e ágil me deixa ofegante ante gemidos e suspiros; dos olhares e dos
paladares. O gosto doce do recheio com o qual lambuzo a boca toda sugando cada
gota.
É bonito e combina com Paris, algo misto entre azul
violáceo e vermelho do vinho, não sei bem explicar, mas é bonito, porque uma
mesa e um banco retém uma história. Eu caminho todas as noites pela mesma rua,
volto pra casa com a sensação de plenitude, completude, também não sei
explicar, sou péssimo com definições – gosto de ser assim -, a mesma rua que já
me viu prantear e suspirar profundo, hoje me vê sorrindo bobo e balançando meu
guarda chuva, ou melhor, minha bengala imaginária, daquelas usadas em Paris
antigamente, é, esse amontoado imaginário onde, sob ele, podemos tudo, nem que
seja parar no meio da rua e trocarmos um beijo enquanto o temporal mostra suas
garras. Não me importo muito de me molhar.
O disco roda à 33 rpm e o tempo para, tudo derrete, se
faz, refaz, torna a moldar um circunspecto infinito da tua presença e o tudo
simplesmente cede à paz. E eu furo o disco ouvindo Peter Gabriel, tomo um gole,
ou dois de vinho, a fumaça se dissipa e eu te vejo por entre as brumas da rua,
uma beleza primaveril no inverno cortante. Sigo
me perdendo nestes tantos
pensamentos onde tu te esgueiras e os invade de forma tão serelepe, como uma
criança pulando poças d’água pela rua ou não pisando nas linhas dos ladrilhos,
pra não morrer. Essa jovialidade, esse sopro jovial também invade cada parte do
meu ser e me retira do profundo da clausura, tanto me apetece que sempre espero
pela próxima vez.
Não temos Paris agora, mas poderíamos ter, mas quem se
importa, na verdade, quando, no fundo, construímos um pequeno universo tão
repleto de tantas coisas. Um dia, sob a lua, às margens do Sena, será possível
ver todas as luzes da cidade e caminhar pelos boulevares, passagens, nos
esgueirarmos pelas passagens secretas da velha Paris, sentar e tomar um café,
ver rinocerontes, bebericar um gole ou dois de vinho, esse vinho doce que tu
trouxeste de volta à minha boca.
Então eu olho pela janela e admiro as brumas da madrugada
enquanto a fumaça evanesce e se perde na bruma desse inverno tão aconchegante e
repleto de acalentos, este movimento perspicaz dos meus dedos a narrar tantas
coisas, frenesi de uma cabeça tão repleta de pensamentos, informações, coisas,
planos e mais planos. Nos fragmentos de tudo que sou, tenho em mim algo
inteiro. Um.