quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Terapia I

Caminhar é verbo intransitivo. Mas transita. Transita em órbitas desprovidas de ornamentos, transita em ruas calçadas, alagadas e molhadas. Transita sem rumo na completa distorção do sentido. Caminhar não tem objeto, tem apenas ação e aquele que caminha – transeunte – desloca em si o espaço/tempo e torna o caminho tão singular quanto propriamente imagético.
Não foi um dia comum, o sol brilhou em sua intensidade abafada; brisa morna adentrando a janela. Ventilador na velocidade mínima, um divã estrategicamente colocado no canto esquerdo, como sempre. A paisagem era a mesma, misto bucólico entre noir e a precipitação moderna da configuração pré moldada de móveis tão vazios quanto suas funções atrofiadas.
Ela o esperava como quem espera um grande amigo, há anos frequentava o mesmo lugar, conhecia cada canto daquele consultório, o compromisso semanal pré programado há tanto tempo que nem lhe ocorria mais a época; parecia que entrara ali pela primeira vez no dia anterior, mas tudo já lhe era tão conhecido. Cinzeiro, tapete, paredes com breves sinais de umidade.
Sentiu o afundar macio do estofado recém trocado, as almofadas cheiravam à lavanderia. Descreveu em si a profunda compreensão de todos os seus devaneios. Não à toa, refez em si mesmo a órbita de todo seu caminhar, o potencial circundante de seus passos, via naquele divã o lugar excepcional da descoberta de si mesmo. O silêncio é portador de certo conforto, de certa tranquilidade – no meu mundo não há silêncio -, pensou com sobriedade, é impossível crer na ilusão do pleno silêncio.
O silêncio sempre precede a tempestade e no furor cósmico, dela desabam as gotas necessárias para que a alma sinta-se renovada, mas dela também surge o retrato ameno de qualquer lembrança guardada em um armário poeirento, na tentativa desesperada de que a distância realmente traga o esquecimento.

*

Certo dia, limpando tantas mazelas dos recantos mais inóspitos das lembranças, recolheu dali um antigo retrato, maltratado pelo tempo, preso às teias de aranha. Lembrou-se de tantas coisas, entre flashes e vozes, ecoou dissonante a voz melancólica de tantas alegrias, pois, sim, a lembrança é o que faz doer: seja pela ausência ou pela vontade de reviver, a memória dilata-se como fonte inesgotável de certo sofrimento contido, misto de alegria e comoção reavivada pela concatenação de tantos prazeres e desprazeres organizados cuidadosamente em uma balança de contrapeso.
Nas lembranças de outrora, escrutinou pelo sorriso de si mesmo, decadente olhar mascarado descobridor de mundos, poder incontrolável e obstinado de si mesmo. Encontrou a si entre marcas borradas do porta retratos – acendeu um cigarro; baforou a fumaça -, o isqueiro zippo fazia pressão no pequeno bolso da calça jeans, o guardou ainda quente. Sentou na poltrona, olhar fixo na imagem de si refletida na borda de um copo antigo. Encontrou-se consigo, na medida desmedida de sua própria estética, repousou outra máscara sobre a estante e recolheu outros pedaços de si mesmo.
O cigarro queimava cadenciado o tempo da descoberta, os dedos trêmulos mostravam a pura contradição da existência.

*

Caminhar realmente não tem objeto, caminha-se sem rumo, monada estilhaçada entre fornalhas ardentes forjando a si mesmo diariamente, barulho de metal, lata, madeira, brisa morna tocando o rosto.
No divã, caminha-se sem sair do lugar, verbo de ação estacionária, prosa externalizada, narrativa congruente estilhaçada no amarelo claro do dia ofuscando os olhos. O caminho da iluminação é tão opressivo quanto o da escuridão. Mas hoje descobriu em si mesmo mais um parte perdida de sua identidade em processo de reconstrução.