sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Delírio Do Sonho Maldito

Ele não viu nada acontecer. Apresentou-se como uma estátua muda e desamparada, enroscado em algum poste ou cano que prendia o teto daquela rampa. Também não sabia porque estava ali ou a razão pela qual tudo aquilo tinha acontecido. Atônito. Essa é a melhor definição. Perdido em versos e reversos, sua presença apenas reverbera a situação extravagante de sua própria vacuidade.
Também não sabia há quanto tempo aquilo acontecera, há dias não voltava para casa e sabia que as coisas teriam mudado. Quando a encontrou, ela estava nua; nua e morta. Jogada por cima dos lençóis como uma espécie de aberração, arrepio gelado que percorre a espinha e toca-lhe os pés. Ela gelada e ele quente. E ele não sabia como aquilo acontecera. O primeiro impulso, fora de deitar ao lado daquele corpo tão sereno na plenitude da morte, o segundo fora beijá-la, queria lhe fazer companhia, não importava.
Desfez-se das roupas, tomou um banho, tocou de leve o lençol que há pouco tempo ela ganhara de algum parente, olhava as formas nuas e pensava em cada parte daquele corpo tão cheio de vida, tão cheio de graça. Algo o fazia pensar que estava se enganando e tudo aquilo era um pesadelo. Beijou-lhe a tez. Fez algum movimento estranho e percebeu como a saudade lhe era uma agulhada forte e constante bem no meio do peito.
Escorregou pelos lençóis e a abraçou. Ele nunca soubera lidar com a morte daqueles que ama. O ápice era acúmulo constante da negação interdita entre suspiros e bocejos. O sono lhe consumia, como entorpecido pelo ópio - perdoem a intromissão, mas a negação é, também, uma espécie de ópio -, imaginava que em algumas horas ela o acordaria, tomariam café, fumariam cigarros, preparariam um drink e ela quereria saber como foi a viagem. Respirou fundo e ainda sentia o cheiro tão delicado daquele ser tão amado.
A pele gelada não o permitia negar, mas também não o deixava acordar do delírio. Escapava a si mesmo na ideia constante da permanência e tinha certeza de alguma impossibilidade de seguir em frente. “Ela deve ter frio”, pensou de forma frívola, tangenciando o inútil. Cobriu-a com o cobertor e estirou o braço por cima dela, na esperança de adormecer e permanecer. Não havia mais vida naqueles corpos.