sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Professor, tu não se cansa de ensinar?


Hoje deixo de lado um pouco o viés literário, a vontade de escrever, inventar, criar e viajar; deixo de lado, pois há urgências maiores, há questionamentos tão dirigidos e tão imponentes aos quais simplesmente baixo a guarda e os permito atingirem-me em cheio. Há exatas 24 horas fui questionado:

“Professor, tu não se cansa de ensinar?”

"Não. Definitivamente não."

O ensino sempre foi meu objetivo, acredito que todos os acontecimentos da minha vida me levaram a esse caminho e eu o aceitei como quem encontra novamente uma amizade de longa data. Eis a verdade, o ensino sempre me foi motivador. Aos meus alunos que estão a ler este texto, talvez se crie a ideia de que fui um excelente aluno, extremamente dedicado, mas não, talvez todos se identifiquem com o Frederico aluno, completamente desleixado, entediado, procrastinador e “nem aí para nada” – como diriam meus pais.
Pois é. Ledo engano o meu, reconheço minhas falhas enquanto aluno, talvez elas também tenham me sido necessárias, pois é através delas que eu tento aperfeiçoar diariamente as minhas aulas, em prol de que vocês não pensem “nossa, que chato, não quero fazer nada disso”. Talvez ter sido um péssimo aluno tenha me feito um professor melhor, essa é a verdade.

Contudo, não é essa a razão por não cansar de ensinar. Eu realmente acredito que o “ensino” é uma via de mão dupla, ele não funciona apenas na medida em que eu ensino a todos e ponto final. Sala de aula é um lugar de constante troca, eu aprendo com os alunos tanto quanto os consigo ensinar. É um lugar perfeito? Talvez não, aliás, definitivamente não é perfeito, mas para mim, ele é o lugar mais próximo do paraíso que há na terra.

É extremamente simples questionar e simplesmente desdobrar páginas e páginas de argumentos pelos quais a docência é uma atividade complicada, desgastante, cansativa, etc, etc. E todos eles são verdadeiros, todos eles são completamente significativos, entretanto a razão primordial de tudo não é material, a docência tem um viés espiritual e único, algo a alimentar a alma.

Enquanto houver diálogo, todo o sacrifício valerá a pena, isso eu posso afirmar com toda a propriedade. Enquanto um aluno quiser de fato aprender e uma pessoa quiser, de fato, ensinar, haverá esperança, haverá futuro e haverá docência. E todas essas coisas são alheias aos problemas, pois lidar com a matéria humana é muito mais significativo e mais interessante do que qualquer outro aspecto. Alguns alunos certamente não lembram mais de mim, outros lembram, outros me acharam chato e alguns um ótimo professor.

Nesse sentido, a pluralidade de uma sala de aula a torna um lugar único – é importante fazer notar que quando me refiro à “sala de aula”, não faço referência apenas a um lugar com 4 paredes e um quadro branco, refiro-me à qualquer lugar possível de ensino; afinal, qual aluno não gosta de “ir para o pátio ler poesia no sol?”.

Questionamentos como o que recebi ontem são de suma importância para o desenvolvimento de tudo, são questionamentos edificantes com o propósito de continuamente explicitar a mim mesmo o real significado de todo o meu esforço.
Portanto, obrigado a todos os meus alunos por todas as reflexões, conversar, questionamentos e bobagens que falamos diariamente!

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Terapia I

Caminhar é verbo intransitivo. Mas transita. Transita em órbitas desprovidas de ornamentos, transita em ruas calçadas, alagadas e molhadas. Transita sem rumo na completa distorção do sentido. Caminhar não tem objeto, tem apenas ação e aquele que caminha – transeunte – desloca em si o espaço/tempo e torna o caminho tão singular quanto propriamente imagético.
Não foi um dia comum, o sol brilhou em sua intensidade abafada; brisa morna adentrando a janela. Ventilador na velocidade mínima, um divã estrategicamente colocado no canto esquerdo, como sempre. A paisagem era a mesma, misto bucólico entre noir e a precipitação moderna da configuração pré moldada de móveis tão vazios quanto suas funções atrofiadas.
Ela o esperava como quem espera um grande amigo, há anos frequentava o mesmo lugar, conhecia cada canto daquele consultório, o compromisso semanal pré programado há tanto tempo que nem lhe ocorria mais a época; parecia que entrara ali pela primeira vez no dia anterior, mas tudo já lhe era tão conhecido. Cinzeiro, tapete, paredes com breves sinais de umidade.
Sentiu o afundar macio do estofado recém trocado, as almofadas cheiravam à lavanderia. Descreveu em si a profunda compreensão de todos os seus devaneios. Não à toa, refez em si mesmo a órbita de todo seu caminhar, o potencial circundante de seus passos, via naquele divã o lugar excepcional da descoberta de si mesmo. O silêncio é portador de certo conforto, de certa tranquilidade – no meu mundo não há silêncio -, pensou com sobriedade, é impossível crer na ilusão do pleno silêncio.
O silêncio sempre precede a tempestade e no furor cósmico, dela desabam as gotas necessárias para que a alma sinta-se renovada, mas dela também surge o retrato ameno de qualquer lembrança guardada em um armário poeirento, na tentativa desesperada de que a distância realmente traga o esquecimento.

*

Certo dia, limpando tantas mazelas dos recantos mais inóspitos das lembranças, recolheu dali um antigo retrato, maltratado pelo tempo, preso às teias de aranha. Lembrou-se de tantas coisas, entre flashes e vozes, ecoou dissonante a voz melancólica de tantas alegrias, pois, sim, a lembrança é o que faz doer: seja pela ausência ou pela vontade de reviver, a memória dilata-se como fonte inesgotável de certo sofrimento contido, misto de alegria e comoção reavivada pela concatenação de tantos prazeres e desprazeres organizados cuidadosamente em uma balança de contrapeso.
Nas lembranças de outrora, escrutinou pelo sorriso de si mesmo, decadente olhar mascarado descobridor de mundos, poder incontrolável e obstinado de si mesmo. Encontrou a si entre marcas borradas do porta retratos – acendeu um cigarro; baforou a fumaça -, o isqueiro zippo fazia pressão no pequeno bolso da calça jeans, o guardou ainda quente. Sentou na poltrona, olhar fixo na imagem de si refletida na borda de um copo antigo. Encontrou-se consigo, na medida desmedida de sua própria estética, repousou outra máscara sobre a estante e recolheu outros pedaços de si mesmo.
O cigarro queimava cadenciado o tempo da descoberta, os dedos trêmulos mostravam a pura contradição da existência.

*

Caminhar realmente não tem objeto, caminha-se sem rumo, monada estilhaçada entre fornalhas ardentes forjando a si mesmo diariamente, barulho de metal, lata, madeira, brisa morna tocando o rosto.
No divã, caminha-se sem sair do lugar, verbo de ação estacionária, prosa externalizada, narrativa congruente estilhaçada no amarelo claro do dia ofuscando os olhos. O caminho da iluminação é tão opressivo quanto o da escuridão. Mas hoje descobriu em si mesmo mais um parte perdida de sua identidade em processo de reconstrução.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Prosa de Amor à Ilha


Cabana de palha, fica lá na praia
O lugar pra ver o mar chegar
Estrela do céu faz um favor
Mostrar aos olhos
Que
Já estamos no céu...
(Dazaranha: Afinar as Rezas)


Sinto saudade de um certo aonde. De certos lugares por onde andei, algumas ruas, algumas praias. Sinto saudade dessa ilha que me criou, fez de mim que eu sou hoje, sinto saudade dessa terra cujas excentricidades excedem todas as expectativas, lugar em que a magia faz parte de tudo, proximidade justa entre o céu e a terra, o melhor de dois mundos.
Sinto saudade dessa ilha surreal, ilha de encantos, ilha de agrados e desagrados; sinto saudade de mim mesmo, refletido na água morna num dia ventoso, das dunas e das lendas.
Saudade  material de todo o imaterial construído, não fiz riqueza, não ganhei a vida, apenas vivi todos os dias permitidos, vivi cada alegria e cada tristeza daquela terra. Saudade de ti, Conceição e suas estradas sinuosas, saudade do “vamos fazer um bom dia hoje”. Saudade de quem fui, de quem me tornei e me perdi depois de atravessar o Mampituba.
Sinto-me despatriado, exilado no extremo sul do sul, 200 km me separam do Chuí e 800 km me separam da minha terra: Não, não é minha terra, não nasci lá; mas gostaria. Cresci na Ilha da Magia, em Nossa Senhora do Desterro. Lá aprendi a ser alguém, aprendi a ser eu mesmo. Tanto flanei pela Lauro Linhares, quantas vezes chorei minhas mágoas sentindo teu ar, Desterro. Quantas vezes aportei em tuas terras e me emocionei por ver a Hercílio Luz iluminada. Vivi para ver neve no pico do Cambirela, eu lembro bem daquela manhã gelada, o ônibus passando pela Beira Mar Norte e eu espantado com aquilo. Vivi o apagão geral, 4 dias sem luz, alguém incendiou os cabos de luz dentro da Colombo Sales, era dia de prova e num repente tudo estava apagado, quatro dias ouvindo “raidinho” à pilha, jogando canastra e todo o falatório era sobre o apagão. E, quando arrumaram tudo, veio a ventania e fez acabar a luz de novo, foram duas horas iluminadas e mais um dia sem luz.
Vivi amores, desamores. Chorei e sorri nas tuas terras e teus braços sempre me aconchegaram, Desterro. Tuas águas embalaram tantas noites, os cigarros à beira mar, o som das águas chacoalhando o infinito da noite, a vista da ilha das aranhas. As vezes que me jogava do trapiche de Canasvieiras.
Sim, eu reclamava: muito da tua beleza foi tirada pela ganância dos homens, muito do teu esplendor foi apagado por prédios cada vez mais altos a cortar tua bela paisagem, mas, mesmo assim, és linda, Desterro. Desterro da minha vida.
Eu lembro bem do meu primeiro dia, descobrindo a nova vida, sendo acolhido pelos teus braços, envolvido pela tua magia, pensando nas bruxas e todas as loucuras que um dia tu me deste. Me presenteaste com a vida, a vida nova, com um lar de verdade. E eu sinto falta do teu ar, sinto falta da tua energia.
Algumas noite eu acordo, pranteio de saudade, ouço “Daza” e penso no dia do meu retorno. Dia de olhar novamente tua paisagem e ter um lugar pra chamar de lar, reclamar do inverno que não faz frio, reclamar das chuvas de outubro/novembro, reclamar das quatro estações no dia, mas percebo o quanto nada disso importava, pois era nos teus braços, Desterro, foi nas tuas terras onde criei meu porto seguro, meu lar desabrigado. Nas tuas praças velei noites a dormir, preocupado se algo aconteceria comigo, mas eu sabia, eu estava em casa, nada aconteceria. Mesmo as tristezas, que eram muitas, nada apagou esse amor infinito por ti.
Sinto saudade deste certo aonde. Aonde vivi, aonde cresci. Lar!

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Dull Day!


E naquele dia, ele acordou com a sensação do vazio, o dito pelo não dito, o ciclo fechando-se na iminência do desamparo. “Findou-se a roda do mundo”, pensou tranquilamente por um instante, enquanto o cigarro queimava lentamente entre os dedos. O ar medíocre do outono quente era opressor e sufocante, as nuvens davam aos céus a escala gradiente do cinza pálido monocromático. Levantou-se como quem não via o mundo há dias, passou duas canecas de café – rotina matutina -, refletiu sobre algumas pautas para o dia, retornou ao quarto, abriu o livro. Marcado na página 85, folheou até o fim do capítulo, na esperança de em pouco tempo conseguir terminá-lo, deixado incompleto na noite passada. 20 páginas; não daria tempo. Uma página por minuto, significaria 20 minutos e ele dispunha de apenas 10. Fechou o livro, mais uma tarefa para a posteridade.

Estranho como nada fazia sentido, mas era justo sorver da panacéia, prevera um dia tumultuado. 6 gotas, um copo d’água – como seria bom trocar a água pelo gin ou pelo whisky, far-lhe-ia tão bem. Enfim, água estava bom. 6 gotas, deglutid’às pressas. O relógio batia a hora habitual de sair de casa, pouca coisa realmente o faria mudar de ideia naquele instante.

Duas voltas na fechadura. Retirou a chave, colocou de novo, verificou se estava trancada: era apenas para ter certeza. Seguiu até o portão, abriu o cadeado. Saíra do conforto do lar, essa é sempre uma sensação de vazio, a hora da saída sempre coincide com o desejo do retorno. Tão logo saiu, bateu o portão atrás de si e o longo caminho de terra já o esperava, de braços abertos como sempre. Conforme caminhava, o caminho se estendia mais e mais em um corredor infindável. Enfim, sempre há um fim.

No caminho, devaneou sobre tantas peculiaridades da vida, olhou para o chão e os sapatos estavam sujos te terra. Caminho poeirento, os sapatos recém engraxados já mostravam-se opacos e sujos. Aquela imagem surgia como uma afronta a todos os princípios. Ensinara-lhe seu avô que o princípio de toda a seriedade é que um homem jamais deixa seus sapatos sujos; como poderia ele ser sério, quando seus sapatos demonstravam desleixo? Como poderia olhar nos olhos de quem fosse, sabendo da sujeira dos sapatos o trairia? Outro pensamento jogado ao vento.
Caminhou mais alguns metros, a estação estava próxima. Ali começava a jornada. Mais um dia, menos um dia; avidamente, contava os dias para algo que nem ele sabia ao certo o que era, mas algo era, mesmo sem saber, aliás, ninguém nem saberia. Entrou na condução, sentou-se no lugar de sempre e abriu o livro, finalmente daria fim à tarefa iniciada na noite anterior. É dia de São Jorge - pensou. Beberia uma cerveja mais tarde – promessa vazia, sabia bem que não o faria de forma alguma.

Terminado o capítulo, a sensação de satisfação durou pouco, pois o livro mostrava o início de outra parte. Concluiu que não deveria afobar-se. Aos poucos, a leitura tomaria forma, não obstante sua curiosidade. Olhou o céu pela janela, nublado, o mesmo cinza do amanhecer, agora far-lhe-ia companhia pelo dia, não seria mais necessário ficar esperançoso por qualquer sinal de chuva, se ela viesse, seria à noite, o momento perfeito para que suas ideias fluíssem retilíneas no papel curvo.

Destacou o papel mais uma vez, nos últimos anos, as habituais regras lhe pendiam no pescoço, com certo orgulho confesso – talvez -, abriu um pequeno pacote, dele retirou um chocolate, mordeu um pedaço e esperou que o mesmo derretesse na boca. Engraçado, a água com gás estava sem gás, apenas aquele gosto estranho de água gaseíficada congelada e logo depois posta à venda. Mais uma vez, bebeu do líquido sem sabor, esperando que a sensação gelada lhe refrescasse as ideias, diminuisse a temperatura do corpo – claro, ele preferia a cerveja prometida à São Jorge, mas não foi o caso -, seguiu pela rua como quem não tem destino, aliás, como se o único destino fosse a ausência dele mesmo; presença da ausência.
Pensou em quando ouvira ou lera, não sabia muito bem, pela primeira vez aquele termo, algo desconhecido, a materialização linguística de algo tão constante em sua vida. Engraçado como os conceitos tomam formas e pensa-se “como pude viver até hoje sem isso?”. Divagações à parte, o tempo abafado ainda lhe era opressivo, a cabeça latejava ao ritmo do coração, cada batida, um lampejo incessável daquela dor aguda e constante; os medicamentos não lhe bastaram. Não é novidade, as sente há tanto tempo que nem mais sabe ao certo o porquê de insistir em lutar contra.

A sinfonia era perfeita; pessoas passavam pela rua, transeuntes sem rumo, vapores dos motores movidos a combustíveis fósseis: fumaça preta e horizonte opaco. Matizes de um dia cinza na cidade tão cinza. Ele sempre questionou o porquê daquele lugar ser tão cinza, tão baixo, tão sem edifícios; concebia a cidade como um entre-lugar temporal esquecido entre a metade e o final do século XX, tudo era longe, afastado. O lugar ostentava uma carapuça fúnebre, mas orgulha-se de sua importância durante a revolução farroupilha. Sim, nessa cidade em que a revolução foi deflagrada, em uma rua bem conhecida, Bento Gonçalves assinou o papel que começara a coisa toda. E pra quê?

Nada de bom surgiu disso tudo. Uma cidade orgulhosa de um porto e meia dúzia de museus com nomes estranhos, lugares cuja presença e a ausência representam simplesmente a mesma coisa. Porto seguro, alguns diriam, mas tudo por lá não passa de sucata nos dias de hoje. E a fumaça! Aquele lugar emite fumaças que tornam a atmosfera mais cinza e com cheiro de amônia, alguns dizem que é o cheiro do progresso, outros apenas acreditam na ideia de que há alguma salvação para este lugar.

A bem da verdade, não há. É apenas uma cidadezinha perdida no tempo e no espaço, abandonada no final de uma rodovia que, supostamente, deveria trazer riqueza e progresso. Maldito progresso que esquece constantemente da inteligência, da sabedoria; a leitura esquecida e ninguém preza mais pelo intelecto. Logo este que quanto maior melhor, sim, o cérebro; ninguém se importa mais com isso, apenas creem na ideia de precisar dinheiro, sendo apenas isso importante e nada mais. Não sei bem como falo entre tantas linhas tortas ou pouco ritilíneas, mas nem sempre a panacéia cumpre seu papel.

O peito já latejava em disparada, a dor lhe ardia os pensamentos, tomava-lhe como uma síncope acomete o enfermo. Não houvera convalescência, apenas dor. Enxaqueca desnecessária, ele diz. Não faz questão de preocupar-se com ela, não mais.

Retornava entre os pretextos de futuras brumas, nuvens encardidas e poeirentas, chão poeirento de novo e lá se vão os sapatos a ficar parcos novamente. Mais alguns passos e desistira completamente, não era o dia, aquele, de fato, não seria o melhor dos dias. Teve vontade de desistir, apertou os lábios, colocou a mão nos bolsos e seguiu em frente. Procurou no céu a esperança das brumas, a tinta da pena a escrever no papel.