sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Prosa de Amor à Ilha


Cabana de palha, fica lá na praia
O lugar pra ver o mar chegar
Estrela do céu faz um favor
Mostrar aos olhos
Que
Já estamos no céu...
(Dazaranha: Afinar as Rezas)


Sinto saudade de um certo aonde. De certos lugares por onde andei, algumas ruas, algumas praias. Sinto saudade dessa ilha que me criou, fez de mim que eu sou hoje, sinto saudade dessa terra cujas excentricidades excedem todas as expectativas, lugar em que a magia faz parte de tudo, proximidade justa entre o céu e a terra, o melhor de dois mundos.
Sinto saudade dessa ilha surreal, ilha de encantos, ilha de agrados e desagrados; sinto saudade de mim mesmo, refletido na água morna num dia ventoso, das dunas e das lendas.
Saudade  material de todo o imaterial construído, não fiz riqueza, não ganhei a vida, apenas vivi todos os dias permitidos, vivi cada alegria e cada tristeza daquela terra. Saudade de ti, Conceição e suas estradas sinuosas, saudade do “vamos fazer um bom dia hoje”. Saudade de quem fui, de quem me tornei e me perdi depois de atravessar o Mampituba.
Sinto-me despatriado, exilado no extremo sul do sul, 200 km me separam do Chuí e 800 km me separam da minha terra: Não, não é minha terra, não nasci lá; mas gostaria. Cresci na Ilha da Magia, em Nossa Senhora do Desterro. Lá aprendi a ser alguém, aprendi a ser eu mesmo. Tanto flanei pela Lauro Linhares, quantas vezes chorei minhas mágoas sentindo teu ar, Desterro. Quantas vezes aportei em tuas terras e me emocionei por ver a Hercílio Luz iluminada. Vivi para ver neve no pico do Cambirela, eu lembro bem daquela manhã gelada, o ônibus passando pela Beira Mar Norte e eu espantado com aquilo. Vivi o apagão geral, 4 dias sem luz, alguém incendiou os cabos de luz dentro da Colombo Sales, era dia de prova e num repente tudo estava apagado, quatro dias ouvindo “raidinho” à pilha, jogando canastra e todo o falatório era sobre o apagão. E, quando arrumaram tudo, veio a ventania e fez acabar a luz de novo, foram duas horas iluminadas e mais um dia sem luz.
Vivi amores, desamores. Chorei e sorri nas tuas terras e teus braços sempre me aconchegaram, Desterro. Tuas águas embalaram tantas noites, os cigarros à beira mar, o som das águas chacoalhando o infinito da noite, a vista da ilha das aranhas. As vezes que me jogava do trapiche de Canasvieiras.
Sim, eu reclamava: muito da tua beleza foi tirada pela ganância dos homens, muito do teu esplendor foi apagado por prédios cada vez mais altos a cortar tua bela paisagem, mas, mesmo assim, és linda, Desterro. Desterro da minha vida.
Eu lembro bem do meu primeiro dia, descobrindo a nova vida, sendo acolhido pelos teus braços, envolvido pela tua magia, pensando nas bruxas e todas as loucuras que um dia tu me deste. Me presenteaste com a vida, a vida nova, com um lar de verdade. E eu sinto falta do teu ar, sinto falta da tua energia.
Algumas noite eu acordo, pranteio de saudade, ouço “Daza” e penso no dia do meu retorno. Dia de olhar novamente tua paisagem e ter um lugar pra chamar de lar, reclamar do inverno que não faz frio, reclamar das chuvas de outubro/novembro, reclamar das quatro estações no dia, mas percebo o quanto nada disso importava, pois era nos teus braços, Desterro, foi nas tuas terras onde criei meu porto seguro, meu lar desabrigado. Nas tuas praças velei noites a dormir, preocupado se algo aconteceria comigo, mas eu sabia, eu estava em casa, nada aconteceria. Mesmo as tristezas, que eram muitas, nada apagou esse amor infinito por ti.
Sinto saudade deste certo aonde. Aonde vivi, aonde cresci. Lar!

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Dull Day!


E naquele dia, ele acordou com a sensação do vazio, o dito pelo não dito, o ciclo fechando-se na iminência do desamparo. “Findou-se a roda do mundo”, pensou tranquilamente por um instante, enquanto o cigarro queimava lentamente entre os dedos. O ar medíocre do outono quente era opressor e sufocante, as nuvens davam aos céus a escala gradiente do cinza pálido monocromático. Levantou-se como quem não via o mundo há dias, passou duas canecas de café – rotina matutina -, refletiu sobre algumas pautas para o dia, retornou ao quarto, abriu o livro. Marcado na página 85, folheou até o fim do capítulo, na esperança de em pouco tempo conseguir terminá-lo, deixado incompleto na noite passada. 20 páginas; não daria tempo. Uma página por minuto, significaria 20 minutos e ele dispunha de apenas 10. Fechou o livro, mais uma tarefa para a posteridade.

Estranho como nada fazia sentido, mas era justo sorver da panacéia, prevera um dia tumultuado. 6 gotas, um copo d’água – como seria bom trocar a água pelo gin ou pelo whisky, far-lhe-ia tão bem. Enfim, água estava bom. 6 gotas, deglutid’às pressas. O relógio batia a hora habitual de sair de casa, pouca coisa realmente o faria mudar de ideia naquele instante.

Duas voltas na fechadura. Retirou a chave, colocou de novo, verificou se estava trancada: era apenas para ter certeza. Seguiu até o portão, abriu o cadeado. Saíra do conforto do lar, essa é sempre uma sensação de vazio, a hora da saída sempre coincide com o desejo do retorno. Tão logo saiu, bateu o portão atrás de si e o longo caminho de terra já o esperava, de braços abertos como sempre. Conforme caminhava, o caminho se estendia mais e mais em um corredor infindável. Enfim, sempre há um fim.

No caminho, devaneou sobre tantas peculiaridades da vida, olhou para o chão e os sapatos estavam sujos te terra. Caminho poeirento, os sapatos recém engraxados já mostravam-se opacos e sujos. Aquela imagem surgia como uma afronta a todos os princípios. Ensinara-lhe seu avô que o princípio de toda a seriedade é que um homem jamais deixa seus sapatos sujos; como poderia ele ser sério, quando seus sapatos demonstravam desleixo? Como poderia olhar nos olhos de quem fosse, sabendo da sujeira dos sapatos o trairia? Outro pensamento jogado ao vento.
Caminhou mais alguns metros, a estação estava próxima. Ali começava a jornada. Mais um dia, menos um dia; avidamente, contava os dias para algo que nem ele sabia ao certo o que era, mas algo era, mesmo sem saber, aliás, ninguém nem saberia. Entrou na condução, sentou-se no lugar de sempre e abriu o livro, finalmente daria fim à tarefa iniciada na noite anterior. É dia de São Jorge - pensou. Beberia uma cerveja mais tarde – promessa vazia, sabia bem que não o faria de forma alguma.

Terminado o capítulo, a sensação de satisfação durou pouco, pois o livro mostrava o início de outra parte. Concluiu que não deveria afobar-se. Aos poucos, a leitura tomaria forma, não obstante sua curiosidade. Olhou o céu pela janela, nublado, o mesmo cinza do amanhecer, agora far-lhe-ia companhia pelo dia, não seria mais necessário ficar esperançoso por qualquer sinal de chuva, se ela viesse, seria à noite, o momento perfeito para que suas ideias fluíssem retilíneas no papel curvo.

Destacou o papel mais uma vez, nos últimos anos, as habituais regras lhe pendiam no pescoço, com certo orgulho confesso – talvez -, abriu um pequeno pacote, dele retirou um chocolate, mordeu um pedaço e esperou que o mesmo derretesse na boca. Engraçado, a água com gás estava sem gás, apenas aquele gosto estranho de água gaseíficada congelada e logo depois posta à venda. Mais uma vez, bebeu do líquido sem sabor, esperando que a sensação gelada lhe refrescasse as ideias, diminuisse a temperatura do corpo – claro, ele preferia a cerveja prometida à São Jorge, mas não foi o caso -, seguiu pela rua como quem não tem destino, aliás, como se o único destino fosse a ausência dele mesmo; presença da ausência.
Pensou em quando ouvira ou lera, não sabia muito bem, pela primeira vez aquele termo, algo desconhecido, a materialização linguística de algo tão constante em sua vida. Engraçado como os conceitos tomam formas e pensa-se “como pude viver até hoje sem isso?”. Divagações à parte, o tempo abafado ainda lhe era opressivo, a cabeça latejava ao ritmo do coração, cada batida, um lampejo incessável daquela dor aguda e constante; os medicamentos não lhe bastaram. Não é novidade, as sente há tanto tempo que nem mais sabe ao certo o porquê de insistir em lutar contra.

A sinfonia era perfeita; pessoas passavam pela rua, transeuntes sem rumo, vapores dos motores movidos a combustíveis fósseis: fumaça preta e horizonte opaco. Matizes de um dia cinza na cidade tão cinza. Ele sempre questionou o porquê daquele lugar ser tão cinza, tão baixo, tão sem edifícios; concebia a cidade como um entre-lugar temporal esquecido entre a metade e o final do século XX, tudo era longe, afastado. O lugar ostentava uma carapuça fúnebre, mas orgulha-se de sua importância durante a revolução farroupilha. Sim, nessa cidade em que a revolução foi deflagrada, em uma rua bem conhecida, Bento Gonçalves assinou o papel que começara a coisa toda. E pra quê?

Nada de bom surgiu disso tudo. Uma cidade orgulhosa de um porto e meia dúzia de museus com nomes estranhos, lugares cuja presença e a ausência representam simplesmente a mesma coisa. Porto seguro, alguns diriam, mas tudo por lá não passa de sucata nos dias de hoje. E a fumaça! Aquele lugar emite fumaças que tornam a atmosfera mais cinza e com cheiro de amônia, alguns dizem que é o cheiro do progresso, outros apenas acreditam na ideia de que há alguma salvação para este lugar.

A bem da verdade, não há. É apenas uma cidadezinha perdida no tempo e no espaço, abandonada no final de uma rodovia que, supostamente, deveria trazer riqueza e progresso. Maldito progresso que esquece constantemente da inteligência, da sabedoria; a leitura esquecida e ninguém preza mais pelo intelecto. Logo este que quanto maior melhor, sim, o cérebro; ninguém se importa mais com isso, apenas creem na ideia de precisar dinheiro, sendo apenas isso importante e nada mais. Não sei bem como falo entre tantas linhas tortas ou pouco ritilíneas, mas nem sempre a panacéia cumpre seu papel.

O peito já latejava em disparada, a dor lhe ardia os pensamentos, tomava-lhe como uma síncope acomete o enfermo. Não houvera convalescência, apenas dor. Enxaqueca desnecessária, ele diz. Não faz questão de preocupar-se com ela, não mais.

Retornava entre os pretextos de futuras brumas, nuvens encardidas e poeirentas, chão poeirento de novo e lá se vão os sapatos a ficar parcos novamente. Mais alguns passos e desistira completamente, não era o dia, aquele, de fato, não seria o melhor dos dias. Teve vontade de desistir, apertou os lábios, colocou a mão nos bolsos e seguiu em frente. Procurou no céu a esperança das brumas, a tinta da pena a escrever no papel.