sábado, 14 de setembro de 2019

Folha Amassada

À meia noite, o vento soprava forte, adentrava os espaços entre as janelas, tornava gélida a atmosfera daquela casa tão pequena e tão disforme. Concatenava ideias transitórias e conjecturava saídas para suas próprias mazelas. Ele desconhecia determinados sentimentos, mas era guiado pelo uso regular de algum entorpecente farmacológico e algumas doses de vodca todas as noites. Vertia pela garganta o líquido gelado-quente e o tomava como em torpor insólito, inesperado, inconstante. Sentia o calor gerado pelo álcool em suas entranhas, apaziguava seus pensamentos sobre o cinzeiro cheio de pontas apagadas de cigarro. Sobre os livros, tinha um maço de cigarros e um isqueiro. Ao lado da mesa, uma pilha de papéis em branco e em sua cabeça uma ideia distorcida de qualquer possibilidade aleatória.
Sentia o vento soprando-lhe o ouvido, como uma voz misteriosa a tentar convence-lo de alguma nova possibilidade. Papéis em branco o sufocam, trazem a sensação de alguma incompletude, de um certo desespero causado pela falta de ideias. Crer na abstração de uma inspiração repentina lhe é tão falho quanto acreditar na possibilidade de algum acalento para a alma. Ele serve outra dose; acende outro cigarro. Encara a folha em branco como uma inimiga mortal, arqui-inimiga, pura constatação de sua própria impotência perante ele mesmo. Mesmo que não saiba ou não compreenda, as ações são apenas decorrentes de alguma conjectura sinistra presa ao seu interior, ao torpor diabólico do exílio. E ele escreve. Escreve notas perdidas em cantos de páginas, ensaia versos aleatórios e escusos, tentar criar alguma coisa capaz de alcançar a plenitude de uma linha inteira.
Amassa o papel e o joga fora.
Contínuo sistêmico desordenado, criado e recriado à luz de um gracejo infeliz perante outra folha branca já colocada na máquina. Incerteza de predicados, incerteza de orações coordenadas ou subordinadas, incertezas conscientes em relação à própria linguagem. Devaneios orais, escritos e enclausurados em alguma parte do cérebro. Tristeza resumiria, mas essa não é exatamente a palavra; saudade é uma possibilidade; reencontro é outra. Jogo de opostos, clausuras infinitas de uma prisão sem grades: exílio.
Distante compreensão e distante distinção. Aliteração, pois ele gosta do som repetido entre as palavras, som provocado pela constante repetição delas mesmas. Ele ensaia alguma nota de rodapé, uma amargura reprimida e um lampejo de felicidade. Entre cadernos perdidos, procura alguma sentença antiga a fim de reutiliza-la, remexe velhas anotações, mas apenas enxerga a melancolia do passado que não se encaixa no estilo do presente. Outra pílula e mais um gole. A vodca desce queimando agora. Dissolve vagarosamente o remédio e ele gosta de imaginar que aos poucos a substância cairá na corrente sanguínea e ele adormecerá. A atmosfera gélida o oprime de si mesmo, é empurrado ao fundo, como se, dentro de uma seringa, o êmbolo o empurrasse em direção ao desconhecido que ele não deseja ou almeja. E ele goteja.
Procura nos cantos do quarto escuro alguma forma de iluminação, alguma similaridade reproduzida na apreensão imagética de algum fato aleatório ou de alguma coisa específica que o faça lembrar da esperança. Encontra antigos cacos e pedaços perdidos. Nada além disso. Cifra uma espécie de dor em alguma continuidade tardia, talvez ele procure alguma razão para se sentir assim ou talvez apenas se sinta assim pela corriqueira atmosfera opressiva e depressiva.
Amassa o papel e o joga fora.
Retoma a jornada. Outra folha, mais um recomeço. Dedilha a máquina em busca de alguma palavra singela capaz de exprimir uma enormidade de sentimentos. Tudo ao redor parece vazio sem a presença dela. O mundo parece distante e a vida também.
Amassa o papel e o joga fora.
Ideias desordenadas, pauta puritana deformada em alguma conclusão vazia de algo vazio. Sente a dor invadindo a caixa craniana, mais um remédio. Há remédios para tudo hoje em dia, desde a mais simples dor de cabeça a pior das enxaquecas, mas eles não fazem nada senão enganar a sinapse em prol da ausência do reconhecimento da dor.
Amassa o papel e o joga fora.
Reinicio. As ideias não fluem e sente o coração bater mais forte. Retrata em letras algo mais profundo do que apenas uma descrição incoerente dele mesmo. Chafurdando em velhos arquivos, encontra tantas anotações quanto possíveis. Aforismos em potencial, mas repletos de vazio. Percebe o quanto era vazio na transposição de tantas coisas e, mesmo assim, falta-lhe alguma coisa, falta a palavra necessária, falta alguma coisa que não sabe ao certo descrever, pois nem ele reconhece o que realmente está faltando.
Mais um gole. Já é a terceira dose e nada parece acontecer. O remédio parece não se dissolver tampouco entrar na corrente sanguínea e muito menos chegar ao cérebro. Nada adianta e a dor não alivia. Como um martelo a pregar-lhe mil pregos ao mesmo tempo e não consegue pensar. Ofusca a visão, perde a noção do espaço e do tempo. Os dias se arrastam e parece que nada em específico acontece. É tomado por um misto de tristeza e desespero. Sente como se a dor de cabeça estivesse ali apenas para lembrar-lhe do conteúdo da caixa craniana.
O desespero toma conta dele. A enxaqueca nunca o visita sozinha, ela leva amigos. A corja doentia de todos os males de todos os tempos sempre aparece, trazendo-lhe tantas lembranças e tantos medos e, em toda a fragilidade possível, é contaminado pela sinistra sensação do vazio, complete emptiness. Acende outro cigarro enquanto encara as poucas palavras escritas e pensa se deve, ou não, jogar a folha fora.
Talvez virasse rascunho. Mas ele amassa o papel mais uma vez e o joga fora.
Desiste. Desiste e persiste. Caminha a esmo pela casa, respira fundo, acende mais um cigarro e tenta ordenar alguma coisa cataclísmica na cabeça. Ele queria escrever alguma coisa singela e sexual; romântica e pervertida; um grito silencioso. Qualquer coisa, qualquer coisa que o tirasse da letargia e do temor de apenas empilhar bolas de papel na lata do lixo e sempre ter uma folha branca na sua frente.
Limpa o cinzeiro e volta para o quarto. Enche outro copo, dessa vez não é uma pequena dose. Pega um copo de cozinha, dos mais largos e altos e enche com vodca e uma rodela de limão. Precisa provar do amargo de algo que não seja o exílio. Pensou um dia que o lugar seria alguma forma de redenção, mas estava enganado, apenas acreditou em algo, pois achou justo tentar acreditar. Nunca quis, de fato, deixar a cidade-mãe, mas, de alguma forma, foi obrigado. Nunca existiu real ódio ou alguma coisa assim. Sente a cabeça latejar e não há nada que realmente possa fazer; acende mais um cigarro, enquanto o anterior termina de queimar apoiado no cinzeiro.
Franz tem medo e não consegue admitir a ele mesmo. Vagou anos por uma terra inóspita e infértil, com o gosto ocre de um vinho azedo e cheiro estranho de um cigarro vagabundo. Criou tantas metáforas para definir a simbologia de suas melancolias que por algum tempo esqueceu o verdadeiro significado das coisas, permaneceu inerte a tudo e todos, esquecendo posteriormente de como era sentir alguma coisa e agora ele sente. Sente com clareza e pessoalidade, sente com a formidável intensidade de uma existência pautada em um objetivo claro e específico; um propósito.
Mantém o papel na máquina de escrever e segue dedilhando as teclas macias.
Absorto pelo barulho, vasculha a profundeza de uma alma recém descoberta e semeada com algo tão novo quanto sua própria completude, vasculha entre ensejos alegres tantas palavras quanto sejam possíveis, escreve e reescreve linhas e mais linhas de tantas coisas inexplicáveis. Revira o passado, procura por rastros de toda uma existência mútua e percebe nele mesmo que nunca estiveram sozinhos. Platão já diagnosticara a condenação da raça humana a vagar em busca de suas metades para, apenas assim, retomarem seu pleno poder. Então encontra em cheiros, perfumes, imagens, rastros, fagulhas a permanência de algo tão profundo quanto a própria existência, repara no pouco tempo em que viveu, de fato, sozinho nesse mundo. Era apenas uma criança e as lembranças daquela época são mínimas: ignora-as. A dor de cabeça começa a ceder e dar espaço aos pensamentos paulatinamente ordenados.
Nova linha. Novo parágrafo.
Segue em escrita confessada e paulatina; descreve ante seus próprios olhos linhas e mais linhas repletas de elementos puros como os quatro elementos; sente o calor dos dedos dela tocando-lhe a nuca, o gosto da saliva daquela a quem ama. Derrama sobre ela todo o amor que pulsa em seu coração. O telefone toca e ele atende. Por mais que o exílio o consuma, ele reconhece a verdadeira salvação, ele reconhece a forma como será tragado pelos braços de um amor tão grande e tão puro. A água escorre pela garganta, ele sente o frescor tomando conta do corpo, sente o calor e o universo parece jogar-lhe na cara razões absolutas para sorrir
A sensação de vazio se dissipa como fumaça, ameniza, diminui a pressão sufocante. Horas sentado em frente à folha branca que diz tanto sem dizer coisa alguma, mas a força propulsora está lá, pensamentos deslizando como chuva pelas folhas das árvores, a música toca sem parar como que compassada pelo barulho das teclas. O sentido surge como ofertado pela musa. Movimento estático, silêncio eloquente! Sons deslizando pelos ouvidos, pelos dedos. Toque. Lábios. Sentimento.
O coração bate mais forte e agora completo. As vezes o passado é só uma folha amassada na lixeira que teima em atormentar aquele que senta em frente à máquina de escrever.