terça-feira, 9 de março de 2021

Lápis e tinta

         
As vezes tenho vontade de apenas sentar e escrever; escrever meio que sem rumo, intransitivo, sem algo em mente, apenas a amplitude da divagação livre. E nessa vontade, repousa em mim a representação de tudo o que sou: um emaranhado infinito de desejos e amores. Desconheço forma, tampouco desenho descritivo, não sei desenhar, se soubesse provavelmente o desenho fosse apenas abstração cíclica, aporia contempladora; como que prostrado ante uma gravura surrealista cuja forma imprime o conteúdo em si mesmo.

    Então este desenho desdobra em si mesmo um desmanche da significação anterior, porém há certo charme nesta convicção, arguta imagem a se formar diante dos olhos. Porém é possível apenas contemplá-la, sem de fato a tocar – não, não, como disse, não há rumo ou sentido, tampouco contemplo este quadro da mesma forma como observo um outro retrato.

    Imagem gravada na retina, magnificência vacante, um vazio ocupado por tanta presença, mas neste desdobramento, considero e reconsidero a implicatura de uma presença tão constante e tão eterna. E me perco nessa presença maravilhosa, e a imagem, em si, não foge ao olhar; sorriso perpétuo, seios palpitando, qualquer forma deste corpo tão reluzente, já que nesta imagem resvalam as formas de todo o erotismo das minhas lubricidades.

    Só que nesta jornada, entre fio e malha, despontam tantos e fios e laços. Como disse, apenas escrevo sem rumo, não sigo em direção a um ponto em específico, mas, sim, trilho o caminho, apenas, um caminho sem rumo e sem sistemática, observando as imagens que  se montam ou remontam no decorrer do caminho.

    Então penso que o trilhar, diferentemente da simples sistematização do olhar não é dado pela plenitude da técnica, mas pela simplicidade do gesto; lugar de repouso para a magnitude fundamental de qualquer teoria desenvolvida em nossas letras.

    Quero ser real! Quero compor esta imagem sublime, descabida e perfeita, anseio por ser traço e não sombra, brilho gestual e cintilante: luz. A mesma luz que adentra a fresta da janela, raio solar ofuscante a iluminar a pele e os olhos; buscar entre os cabelos a amplitude pacífica da pele. Papel tão cheio de realidade, confissões rabiscadas no canto da página, completo ensaísmo construtivo onde repousa a matéria de tanta inspiração. Não formo apenas uma malha uniforme, presto contas a mim mesmo, sinto-me em dívida com um certo eu que, jogado em um grande hiato, padeceu da minha melancolia, oprimi a mim mesmo em uma caixa sob a justificativa de proteção. Não apenas isso, pois desse hiato, não fui eu mesmo quem me tirou. Articulo as palavras com certo engasgo arquitetado de um grito feliz, pois fui tirado dessa caixa, atento ao resgate que me circundava, em um espetáculo esperançoso.

    Eu deixara a força de lado e não tive coragem, nem quis tê-la, foi-me necessário ser tirado de lá, assistindo atento o gesto que me circundava, com a luz tênue e poderosa de tantos belos sentimentos.

    Entretanto, nesse canto encanto versos embalados e sentimentos embalsamados, percebi que nas mãos, assim como os estigmas de cristo, brotavam belos nenúfares que, como tomando o corpo inteiro, representavam em si o florescer da esperança renovadora, não sei ao certo o momento em que aconteceu, mas sei bem como o jardim se tornou espesso e colorido. E em solo seco de oásis no deserto, milhares de novas pulsações criaram um rasgo, pois a aridez deu espaço ao gramado verde, gramínea, flores e pássaros. No deserto deste poento caminheiro, trilharam espaços repletos d’uma natureza sem igual, irrestrita, irrepreensível, tua natureza que junto a mim dá esse ar de completude.

    Volto no tempo e relembro tantos acontecimentos, tantos dias de miséria ignóbil e oblíqua, pulsação enfraquecida em alguma espécie de langor, café aguado ou chá sem gosto, remonto cenas ao pegar os negativos da memória e recortá-los antes de, novamente os encaixar na busca por algum sentido ou alguma linearidade, mas há tantas memórias de tantos passados sem sentido, há apenas algo cujo referencial exprime a noção cadavérica e volátil do abismo, do exílio mental da prisão sem grades.





quarta-feira, 3 de março de 2021

non-sense

    Fervia a água na chaleira: apitava. A colher de ervas jazia no fundo da xícara, pensamento comum, afoito e distraído. Fumava, enquanto organizava mentalmente meia dúzia de versos e um punhado estranho de estrofes perdidas. Poesia ventriloquista, muda, concisão; concatenação, nem bem sabia, mas era possível perceber que o gesto, em si - esse carregado de suma importância, pois tudo fazia sentido, mesmo na ausência desse – soaria poético não importasse qual a significância. Aconteceu assim, numa madrugada ensolarada, em plenitude complacente entre desajustado e sério, repleto de nostalgias tão verdadeiras quanto o doce sabor de cada palavra.

    Percebia que o barulho da água não passava de apenas outro ruído imaginário estampado em um semblante colorido da janela a mostrar o pôr do sol. Um rivotril e uma água. Panacéia, alguns diriam. É, é confuso circunscrever minha vênus adornada, pintada dionisiacamente em um papel levemente amassado, porém nada o vale se não for plenamente obstante às tuas formas. Sentei-me molhando os pés em versos soltos e algumas rimas diletantes, embriaguei-me na torpe sentinela de minha própria vivência: eu mesmo.

    Quantas ênfases são necessárias para a diabólica eloquência amorosa transformar-se em pura poesia escrita na tua pele?

    A água quente queimava as folhas de chá, uma mistura aromática de camomila e cravo. Mistura meio oriental, meio alguma outra coisa. Infusão abreviada, calmante-estimulante. Devassa memória fragmentária que não me permite a elocução plena de uma narrativa constante. O disco tocava alguma música desconhecida e eu lembrava do teu corpo junto ao meu, tuas mãos tocando meu peito enquanto me devoravas com teus olhos cintilantes de quem escrutina minha alma em busca de si mesma.

    Essa alma tão espelho, alma cósmica transportada a ti desde o início dos tempos, desde o momento inicial da fragmentação. Tal apologia platônica que nos desenha de forma tão igual e complementar. 

    Naquele dia vesti-me demoradamente, franzi o cenho em buscas de respostas dentro de mim mesmo, contudo as mantive ordenadas aleatoriamente – há ordem no caos. Um passo de cada vez, alguns diriam, enquanto meu desejo era correr; corria, pois sabia qual era o destino. Pela primeira vez eu desconfiava qual seria a repercussão das atitudes. E naquele dia fiz algo por mim mesmo, embarquei como quem esquece o resto do universo.

    O chá esfriando, música tocando e eu sorvendo calmamente goles de versos incontestáveis em ritmo melancólico, mexo as folhas, pensando qual seria a previsão de uma vidente nas folhas ao fundo da xícara. Mentira, eu não uso xícaras, prefiro canecas. Formato arredondado e mais retilíneo permite a conservação do calor, fora a praticidade e o elemento principal, uma alça onde os dedos não fiquem desconfortavelmente colocados.

    Os carros passavam em alta velocidade pela avenida, pensamentos rodopiantes, dançarinos incrédulos do poder devastador de tantas fumaças; a concepção terrena simplesmente delineada pelos meus dedos enroscados nos teus e sabíamos não temer mal algum, estávamos seguros no finito-infinito da embriaguez urbana. Engraçado como histórias de amor tendem a começar em cenários bucólicos e desprovidos de cimento...