sexta-feira, 18 de junho de 2010

Vênus IV

Comecei com um singelo e único aprendizado, num repente tudo parece ruir. Ruir como uma forma de me ensinar a profundidade da digressão: ônus, eu sei o quanto essa palavra pesa na minha vida, também sei muitos dos resultados dos quais a simples poeira que paira sobre os meus calçados de sair representa.

Por mais que seja uma simples limpeza, essa limpeza representa mais do que uma profundidade obscura dotada de um significante incomum. Por mais que eu caminhe sobre ossos e que em um cemitério tudo o que se faz presente é a simples ausência. Posar para um retrato sob uma sepultura é tão digno quanto simplesmente respirar: Era simples, a senhorita prostava-se ali, sentada sob a laje fria com uma simples cigarrilha por entre os dedos, eu prostava-me por detrás do cavalete. Um simples moderno senhor que palpitava as tintas sob a tela, refletindo ali o pleno retrato da ausência, era ela, a Vênus dos sonhos contornada por uma aura de constante volúpia e gozo.

Traço após traço, eu a distinguia das maneiras cotidianas do ser, via ali a essência da essência, os seios palpitantes sobre o lenço que cobria a barriga, apoiada por entre os anjos mais sádicos que Tereza D'Ávila já fitou. As setas que voltadas para ela indicavam a total profanação angelical do ser, explicavam os gemidos constantes que aquela mulher exarcebava por entre as inúmeras sepulturas de tom acinzentado que ali haviam. O pincel pairava então sobre o desenho do seu seio, delicado e macio, que mesmo sem tocá-los era possível sentir o turbilhão sinestésico que ali se fazia presente.

Continuamente, eu limpava os pincéis como se cada instante pudesse ser o último e o último do último, os traços eram fortes e rápidos, efêmero, simples, tudo indicava movimento, como a roda de um moinho que nunca pára frente a decorrência freqüente da fúria arrasadora de um rio; assim era o retrato desse retrato, foi assim que pintei minha Vênus. Ali, semi-nua sob um simples pedaço de seda vermelha, estendida sobre uma lápide que outrora oferecia paz ao ser que embaixo daquelas pedras encontrava-se descansando, mas que agora no auge do ardor necrófilo da Deusa, se contorcia em volúpias enquanto eu como seu amante a pintava.

No fulgor do vinho que meu desenho se tornava horrendo e belo, efêmero e sarcástico, como se em seus traços apenas se formassem rabiscos incontínuos e gotas inquietas de tinta vermelha que pairavam sobre a tela. Ela como bondosa e sábia elogiava meus traços, eu via a imensidão que era aquela simples tela, que não passava de cinqüenta centímetros de arestas, mas que representava a grande devastação que em mim se fazia presente. Presença da ausência. Bem comum. Bem singelo.

Aquela sepultura nunca mais será a mesma – me disse ela – Deitamo-nos sob a seda vermelha que antes a cobria. Movimentos exaustivos. Éramos mortal e uma Deusa, concatenados pela avassaladora volúpia que seus suspiros emanavam pelo campo morto. Daquela noite, pouco mais que isso me recordo, fui tomado por uma inconsciência súbita que não sei se advinda do vinho ou daquele corpo que me sugava, a tela que eternizava minha Deusa, se perdeu com a alvorada. Na verdade, tudo se perdeu.

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