sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Dull Day!


E naquele dia, ele acordou com a sensação do vazio, o dito pelo não dito, o ciclo fechando-se na iminência do desamparo. “Findou-se a roda do mundo”, pensou tranquilamente por um instante, enquanto o cigarro queimava lentamente entre os dedos. O ar medíocre do outono quente era opressor e sufocante, as nuvens davam aos céus a escala gradiente do cinza pálido monocromático. Levantou-se como quem não via o mundo há dias, passou duas canecas de café – rotina matutina -, refletiu sobre algumas pautas para o dia, retornou ao quarto, abriu o livro. Marcado na página 85, folheou até o fim do capítulo, na esperança de em pouco tempo conseguir terminá-lo, deixado incompleto na noite passada. 20 páginas; não daria tempo. Uma página por minuto, significaria 20 minutos e ele dispunha de apenas 10. Fechou o livro, mais uma tarefa para a posteridade.

Estranho como nada fazia sentido, mas era justo sorver da panacéia, prevera um dia tumultuado. 6 gotas, um copo d’água – como seria bom trocar a água pelo gin ou pelo whisky, far-lhe-ia tão bem. Enfim, água estava bom. 6 gotas, deglutid’às pressas. O relógio batia a hora habitual de sair de casa, pouca coisa realmente o faria mudar de ideia naquele instante.

Duas voltas na fechadura. Retirou a chave, colocou de novo, verificou se estava trancada: era apenas para ter certeza. Seguiu até o portão, abriu o cadeado. Saíra do conforto do lar, essa é sempre uma sensação de vazio, a hora da saída sempre coincide com o desejo do retorno. Tão logo saiu, bateu o portão atrás de si e o longo caminho de terra já o esperava, de braços abertos como sempre. Conforme caminhava, o caminho se estendia mais e mais em um corredor infindável. Enfim, sempre há um fim.

No caminho, devaneou sobre tantas peculiaridades da vida, olhou para o chão e os sapatos estavam sujos te terra. Caminho poeirento, os sapatos recém engraxados já mostravam-se opacos e sujos. Aquela imagem surgia como uma afronta a todos os princípios. Ensinara-lhe seu avô que o princípio de toda a seriedade é que um homem jamais deixa seus sapatos sujos; como poderia ele ser sério, quando seus sapatos demonstravam desleixo? Como poderia olhar nos olhos de quem fosse, sabendo da sujeira dos sapatos o trairia? Outro pensamento jogado ao vento.
Caminhou mais alguns metros, a estação estava próxima. Ali começava a jornada. Mais um dia, menos um dia; avidamente, contava os dias para algo que nem ele sabia ao certo o que era, mas algo era, mesmo sem saber, aliás, ninguém nem saberia. Entrou na condução, sentou-se no lugar de sempre e abriu o livro, finalmente daria fim à tarefa iniciada na noite anterior. É dia de São Jorge - pensou. Beberia uma cerveja mais tarde – promessa vazia, sabia bem que não o faria de forma alguma.

Terminado o capítulo, a sensação de satisfação durou pouco, pois o livro mostrava o início de outra parte. Concluiu que não deveria afobar-se. Aos poucos, a leitura tomaria forma, não obstante sua curiosidade. Olhou o céu pela janela, nublado, o mesmo cinza do amanhecer, agora far-lhe-ia companhia pelo dia, não seria mais necessário ficar esperançoso por qualquer sinal de chuva, se ela viesse, seria à noite, o momento perfeito para que suas ideias fluíssem retilíneas no papel curvo.

Destacou o papel mais uma vez, nos últimos anos, as habituais regras lhe pendiam no pescoço, com certo orgulho confesso – talvez -, abriu um pequeno pacote, dele retirou um chocolate, mordeu um pedaço e esperou que o mesmo derretesse na boca. Engraçado, a água com gás estava sem gás, apenas aquele gosto estranho de água gaseíficada congelada e logo depois posta à venda. Mais uma vez, bebeu do líquido sem sabor, esperando que a sensação gelada lhe refrescasse as ideias, diminuisse a temperatura do corpo – claro, ele preferia a cerveja prometida à São Jorge, mas não foi o caso -, seguiu pela rua como quem não tem destino, aliás, como se o único destino fosse a ausência dele mesmo; presença da ausência.
Pensou em quando ouvira ou lera, não sabia muito bem, pela primeira vez aquele termo, algo desconhecido, a materialização linguística de algo tão constante em sua vida. Engraçado como os conceitos tomam formas e pensa-se “como pude viver até hoje sem isso?”. Divagações à parte, o tempo abafado ainda lhe era opressivo, a cabeça latejava ao ritmo do coração, cada batida, um lampejo incessável daquela dor aguda e constante; os medicamentos não lhe bastaram. Não é novidade, as sente há tanto tempo que nem mais sabe ao certo o porquê de insistir em lutar contra.

A sinfonia era perfeita; pessoas passavam pela rua, transeuntes sem rumo, vapores dos motores movidos a combustíveis fósseis: fumaça preta e horizonte opaco. Matizes de um dia cinza na cidade tão cinza. Ele sempre questionou o porquê daquele lugar ser tão cinza, tão baixo, tão sem edifícios; concebia a cidade como um entre-lugar temporal esquecido entre a metade e o final do século XX, tudo era longe, afastado. O lugar ostentava uma carapuça fúnebre, mas orgulha-se de sua importância durante a revolução farroupilha. Sim, nessa cidade em que a revolução foi deflagrada, em uma rua bem conhecida, Bento Gonçalves assinou o papel que começara a coisa toda. E pra quê?

Nada de bom surgiu disso tudo. Uma cidade orgulhosa de um porto e meia dúzia de museus com nomes estranhos, lugares cuja presença e a ausência representam simplesmente a mesma coisa. Porto seguro, alguns diriam, mas tudo por lá não passa de sucata nos dias de hoje. E a fumaça! Aquele lugar emite fumaças que tornam a atmosfera mais cinza e com cheiro de amônia, alguns dizem que é o cheiro do progresso, outros apenas acreditam na ideia de que há alguma salvação para este lugar.

A bem da verdade, não há. É apenas uma cidadezinha perdida no tempo e no espaço, abandonada no final de uma rodovia que, supostamente, deveria trazer riqueza e progresso. Maldito progresso que esquece constantemente da inteligência, da sabedoria; a leitura esquecida e ninguém preza mais pelo intelecto. Logo este que quanto maior melhor, sim, o cérebro; ninguém se importa mais com isso, apenas creem na ideia de precisar dinheiro, sendo apenas isso importante e nada mais. Não sei bem como falo entre tantas linhas tortas ou pouco ritilíneas, mas nem sempre a panacéia cumpre seu papel.

O peito já latejava em disparada, a dor lhe ardia os pensamentos, tomava-lhe como uma síncope acomete o enfermo. Não houvera convalescência, apenas dor. Enxaqueca desnecessária, ele diz. Não faz questão de preocupar-se com ela, não mais.

Retornava entre os pretextos de futuras brumas, nuvens encardidas e poeirentas, chão poeirento de novo e lá se vão os sapatos a ficar parcos novamente. Mais alguns passos e desistira completamente, não era o dia, aquele, de fato, não seria o melhor dos dias. Teve vontade de desistir, apertou os lábios, colocou a mão nos bolsos e seguiu em frente. Procurou no céu a esperança das brumas, a tinta da pena a escrever no papel.

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