E naquele dia, ele
acordou com a sensação do vazio, o dito pelo não dito, o ciclo fechando-se na
iminência do desamparo. “Findou-se a roda do mundo”, pensou tranquilamente por
um instante, enquanto o cigarro queimava lentamente entre os dedos. O ar medíocre
do outono quente era opressor e sufocante, as nuvens davam aos céus a escala
gradiente do cinza pálido monocromático. Levantou-se como quem não via o mundo
há dias, passou duas canecas de café – rotina matutina -, refletiu sobre
algumas pautas para o dia, retornou ao quarto, abriu o livro. Marcado na página
85, folheou até o fim do capítulo, na esperança de em pouco tempo conseguir
terminá-lo, deixado incompleto na noite passada. 20 páginas; não daria tempo.
Uma página por minuto, significaria 20 minutos e ele dispunha de apenas 10.
Fechou o livro, mais uma tarefa para a posteridade.
Estranho como nada fazia
sentido, mas era justo sorver da panacéia, prevera um dia tumultuado. 6 gotas,
um copo d’água – como seria bom trocar a água pelo gin ou pelo whisky,
far-lhe-ia tão bem. Enfim, água estava bom. 6 gotas, deglutid’às pressas. O
relógio batia a hora habitual de sair de casa, pouca coisa realmente o faria
mudar de ideia naquele instante.
Duas voltas na fechadura.
Retirou a chave, colocou de novo, verificou se estava trancada: era apenas para
ter certeza. Seguiu até o portão, abriu o cadeado. Saíra do conforto do lar,
essa é sempre uma sensação de vazio, a hora da saída sempre coincide com o
desejo do retorno. Tão logo saiu, bateu o portão atrás de si e o longo caminho
de terra já o esperava, de braços abertos como sempre. Conforme caminhava, o
caminho se estendia mais e mais em um corredor infindável. Enfim, sempre há um
fim.
No caminho, devaneou
sobre tantas peculiaridades da vida, olhou para o chão e os sapatos estavam
sujos te terra. Caminho poeirento, os sapatos recém engraxados já mostravam-se
opacos e sujos. Aquela imagem surgia como uma afronta a todos os princípios. Ensinara-lhe
seu avô que o princípio de toda a seriedade é que um homem jamais deixa seus
sapatos sujos; como poderia ele ser sério, quando seus sapatos demonstravam
desleixo? Como poderia olhar nos olhos de quem fosse, sabendo da sujeira dos
sapatos o trairia? Outro pensamento jogado ao vento.
Caminhou mais alguns
metros, a estação estava próxima. Ali começava a jornada. Mais um dia, menos um
dia; avidamente, contava os dias para algo que nem ele sabia ao certo o que
era, mas algo era, mesmo sem saber, aliás, ninguém nem saberia. Entrou na
condução, sentou-se no lugar de sempre e abriu o livro, finalmente daria fim à
tarefa iniciada na noite anterior. É dia de São Jorge - pensou. Beberia uma
cerveja mais tarde – promessa vazia, sabia bem que não o faria de forma alguma.
Terminado o capítulo, a
sensação de satisfação durou pouco, pois o livro mostrava o início de outra
parte. Concluiu que não deveria afobar-se. Aos poucos, a leitura tomaria forma,
não obstante sua curiosidade. Olhou o céu pela janela, nublado, o mesmo cinza
do amanhecer, agora far-lhe-ia companhia pelo dia, não seria mais necessário
ficar esperançoso por qualquer sinal de chuva, se ela viesse, seria à noite, o
momento perfeito para que suas ideias fluíssem retilíneas no papel curvo.
Destacou o papel mais uma
vez, nos últimos anos, as habituais regras lhe pendiam no pescoço, com certo
orgulho confesso – talvez -, abriu um pequeno pacote, dele retirou um
chocolate, mordeu um pedaço e esperou que o mesmo derretesse na boca.
Engraçado, a água com gás estava sem gás, apenas aquele gosto estranho de água
gaseíficada congelada e logo depois posta à venda. Mais uma vez, bebeu do
líquido sem sabor, esperando que a sensação gelada lhe refrescasse as ideias,
diminuisse a temperatura do corpo – claro, ele preferia a cerveja prometida à
São Jorge, mas não foi o caso -, seguiu pela rua como quem não tem destino,
aliás, como se o único destino fosse a ausência dele mesmo; presença da
ausência.
Pensou em quando ouvira
ou lera, não sabia muito bem, pela primeira vez aquele termo, algo
desconhecido, a materialização linguística de algo tão constante em sua vida.
Engraçado como os conceitos tomam formas e pensa-se “como pude viver até hoje
sem isso?”. Divagações à parte, o tempo abafado ainda lhe era opressivo, a
cabeça latejava ao ritmo do coração, cada batida, um lampejo incessável daquela
dor aguda e constante; os medicamentos não lhe bastaram. Não é novidade, as
sente há tanto tempo que nem mais sabe ao certo o porquê de insistir em lutar
contra.
A sinfonia era perfeita;
pessoas passavam pela rua, transeuntes sem rumo, vapores dos motores movidos a
combustíveis fósseis: fumaça preta e horizonte opaco. Matizes de um dia cinza
na cidade tão cinza. Ele sempre questionou o porquê daquele lugar ser tão
cinza, tão baixo, tão sem edifícios; concebia a cidade como um entre-lugar
temporal esquecido entre a metade e o final do século XX, tudo era longe,
afastado. O lugar ostentava uma carapuça fúnebre, mas orgulha-se de sua
importância durante a revolução farroupilha. Sim, nessa cidade em que a
revolução foi deflagrada, em uma rua bem conhecida, Bento Gonçalves assinou o
papel que começara a coisa toda. E pra quê?
Nada de bom surgiu disso
tudo. Uma cidade orgulhosa de um porto e meia dúzia de museus com nomes
estranhos, lugares cuja presença e a ausência representam simplesmente a mesma
coisa. Porto seguro, alguns diriam, mas tudo por lá não passa de sucata nos
dias de hoje. E a fumaça! Aquele lugar emite fumaças que tornam a atmosfera
mais cinza e com cheiro de amônia, alguns dizem que é o cheiro do progresso,
outros apenas acreditam na ideia de que há alguma salvação para este lugar.
A bem da verdade, não há.
É apenas uma cidadezinha perdida no tempo e no espaço, abandonada no final de
uma rodovia que, supostamente, deveria trazer riqueza e progresso. Maldito
progresso que esquece constantemente da inteligência, da sabedoria; a leitura
esquecida e ninguém preza mais pelo intelecto. Logo este que quanto maior
melhor, sim, o cérebro; ninguém se importa mais com isso, apenas creem na ideia
de precisar dinheiro, sendo apenas isso importante e nada mais. Não sei bem
como falo entre tantas linhas tortas ou pouco ritilíneas, mas nem sempre a
panacéia cumpre seu papel.
O peito já latejava em
disparada, a dor lhe ardia os pensamentos, tomava-lhe como uma síncope acomete
o enfermo. Não houvera convalescência, apenas dor. Enxaqueca desnecessária, ele
diz. Não faz questão de preocupar-se com ela, não mais.
Retornava entre os
pretextos de futuras brumas, nuvens encardidas e poeirentas, chão poeirento de
novo e lá se vão os sapatos a ficar parcos novamente. Mais alguns passos e
desistira completamente, não era o dia, aquele, de fato, não seria o melhor dos
dias. Teve vontade de desistir, apertou os lábios, colocou a mão nos bolsos e
seguiu em frente. Procurou no céu a esperança das brumas, a tinta da pena a
escrever no papel.
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