quarta-feira, 3 de março de 2021

non-sense

    Fervia a água na chaleira: apitava. A colher de ervas jazia no fundo da xícara, pensamento comum, afoito e distraído. Fumava, enquanto organizava mentalmente meia dúzia de versos e um punhado estranho de estrofes perdidas. Poesia ventriloquista, muda, concisão; concatenação, nem bem sabia, mas era possível perceber que o gesto, em si - esse carregado de suma importância, pois tudo fazia sentido, mesmo na ausência desse – soaria poético não importasse qual a significância. Aconteceu assim, numa madrugada ensolarada, em plenitude complacente entre desajustado e sério, repleto de nostalgias tão verdadeiras quanto o doce sabor de cada palavra.

    Percebia que o barulho da água não passava de apenas outro ruído imaginário estampado em um semblante colorido da janela a mostrar o pôr do sol. Um rivotril e uma água. Panacéia, alguns diriam. É, é confuso circunscrever minha vênus adornada, pintada dionisiacamente em um papel levemente amassado, porém nada o vale se não for plenamente obstante às tuas formas. Sentei-me molhando os pés em versos soltos e algumas rimas diletantes, embriaguei-me na torpe sentinela de minha própria vivência: eu mesmo.

    Quantas ênfases são necessárias para a diabólica eloquência amorosa transformar-se em pura poesia escrita na tua pele?

    A água quente queimava as folhas de chá, uma mistura aromática de camomila e cravo. Mistura meio oriental, meio alguma outra coisa. Infusão abreviada, calmante-estimulante. Devassa memória fragmentária que não me permite a elocução plena de uma narrativa constante. O disco tocava alguma música desconhecida e eu lembrava do teu corpo junto ao meu, tuas mãos tocando meu peito enquanto me devoravas com teus olhos cintilantes de quem escrutina minha alma em busca de si mesma.

    Essa alma tão espelho, alma cósmica transportada a ti desde o início dos tempos, desde o momento inicial da fragmentação. Tal apologia platônica que nos desenha de forma tão igual e complementar. 

    Naquele dia vesti-me demoradamente, franzi o cenho em buscas de respostas dentro de mim mesmo, contudo as mantive ordenadas aleatoriamente – há ordem no caos. Um passo de cada vez, alguns diriam, enquanto meu desejo era correr; corria, pois sabia qual era o destino. Pela primeira vez eu desconfiava qual seria a repercussão das atitudes. E naquele dia fiz algo por mim mesmo, embarquei como quem esquece o resto do universo.

    O chá esfriando, música tocando e eu sorvendo calmamente goles de versos incontestáveis em ritmo melancólico, mexo as folhas, pensando qual seria a previsão de uma vidente nas folhas ao fundo da xícara. Mentira, eu não uso xícaras, prefiro canecas. Formato arredondado e mais retilíneo permite a conservação do calor, fora a praticidade e o elemento principal, uma alça onde os dedos não fiquem desconfortavelmente colocados.

    Os carros passavam em alta velocidade pela avenida, pensamentos rodopiantes, dançarinos incrédulos do poder devastador de tantas fumaças; a concepção terrena simplesmente delineada pelos meus dedos enroscados nos teus e sabíamos não temer mal algum, estávamos seguros no finito-infinito da embriaguez urbana. Engraçado como histórias de amor tendem a começar em cenários bucólicos e desprovidos de cimento...




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