sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Esfinge

Fim. O relógio marcava quatorze horas. Um dia a menos, um dia a mais. Franz apanhou o paletó e seguiu em direção à porta. Girou a maçaneta e frouxou o nó da gravata. Entrou no carro, por alguns instantes pensou no calor insuportável, mas preferiu deixar de lado, a brisa era fresca e o carro andava rápido.
Chegou à sala de espera e já era aguardado. Alguns minutos depois entrou na sala. Na mesma poltrona de sempre ele o aguardava. “Boa tarde”, disse Franz. Com certa comicidade “Tarde boa e quente”, replicou. – Sente. Concluiu.
- Há algo de novo; mudou o estofado?
- Analítico. Não quer sentar?
- Hm, é estranho, novo demais e diferente demais.
Franz sentou-se no chão, certamente uma mudança brusca como aquela o havia causado, em algum nível, certa náusea.
- Além da mudança, notou mais alguma coisa nova?
- Ironicamente ver um cinzeiro num lugar onde não se pode fumar é algo estranho, mas não quero falar nada pior.
- Você pode fumar, se quiser.
- Estou bem.
Num impulso quase defensivo, Franz acendeu um cigarro. “Não vejo razão para trocar o estofado, sério mesmo. Qual era o problema com o outro?”
- Você quer falar sobre isso?
- Não. Não, de forma alguma. Mas também não sei sobre o que falar. Faz algum tempo, muito mudou, e nada mudou.
Com um sorriso único e frio, ele riu do comentário. “Sempre tudo muda, mas nada muda!”.
- Pode soar engraçado, no entanto é verdade. E outra verdade é que não sei por onde começar, simples seria sentar e observar como minha cabeça está agora. Enfim, já sei, normalmente é fácil perceber o quão rápido as coisas passam, os dias parecem mais curtos e a noite rende muito mais e em diversos sentidos. Nem mesmo o mais vil e cruel sono é incapaz de abater a presa. De alguma forma, quando o faz, em suas garras carrega o mesmo sonho.
Me vejo arrastado pelo menos corredor ladrilhado por hexágonos perturbadoramente simétricos, mas a sensação não é ruim. Por duas ou três vezes vislumbrei um quadro ao fim do corredor. Depois tudo escurece e tenho o quadro nas mãos e, no entanto, não consigo decifrar o que me diz.
Há um casal sentado, não os reconheço, mas são familiares e junto deles há uma criança.
-Você mergulha nesse corredor, é interessante a ausência do medo, talvez. E o que acontece?
- Eu acordo e a sensação é boa.
- E é em sigilo silencioso?
- Não, é mímica, distorção, já é um reflexo, uma imagem a me olhar e não a consigo ler, apenas uma poderosa forma onde o vermelho recobre a parte superior, mas não me fere os olhos ou sentidos.
Existe algo dissonante na ação em si, não sei ao certo se olho o quadro ou se, do quadro, me observam como quem aguarda o trem ou um ônibus.
- Você se sente invadido?
- Não, é cíclico, mas não invasivo, complementar, em um sentido mais amplo. Mesmo assim não é isso o que mais me apraz, existe algo a mais, algo além do que há por si só, algo além de mim, tange o metafísico em essência a engendrar o vislumbre em si enquanto forma renovadora.
Irrompe na matéria pulsante enquanto luz desbravadora, acontece no mesmo tom carmesin do opulento crepúsculo, e se desfaz em pronto divagar de si na forma dos mesmos tentáculos que lança a mim na escuridão.
Afaga a nuca com dedos mornos a embalar cabelos envoltos em chamas. Nas chamas o brilho reluz na aurora do minuto a passar em ânsia. Existe algo inexplicável, esse algo manter-se-á dessa forma. Vem sei não és dado aos enigmas da alma e dos planos dados ao espírito.
Bem sei, mas é como adentrar um rio durante a madrugada quente, onde as pedras sempre são banhadas por águas geladas e a alma acolhe o frio de boa a pura vontade. Por pura e adorada vontade desfeita em flor a deleitar-se no puro rio. E tudo desdobra-se em perfeito fluxo, tão perfeito quanto o rio, como a natureza em si.
-Vejo que muito mudou, então. Mudou naquilo que tange o conteúdo, isso é deveras importante, ainda mais ao falar de si sem interpor barreiras diversas. É essa mudança que o impede de sentar-se senão no chão?
- Não! Esse estofado. Entrar aqui é como estar despido de todas as defesas, é incompreensível conseguir repousar o corpo sem defesas em um lugar desconhecido e estranho.
- Justo.
- Então, o que há de novo senão a renovação da esperança? Eis à luz da nova aurora onde desfaleço pesadamente ao lado da própria ideia, uma presença que, mesmo ausente enquanto princípio físico, completa de forma bela e despudorada.
Por isso meu caminhar ébrio retorna ao ponto onde se enlaça o recomeço, sei o aspecto denso dessa divagação, mas o que mais eu poderia fazer além de falar de mim mesmo em uma perceira pessoa?
- Entendo.
- Pois é.
Aos passos silenciosos do relógio, Franz percebe seu tempo chegando ao fim. Há algo além do mero caminhar de volta, estranhamente há um novo brilho no sol, até o farfalhar das árvores é sonoramente mais aprazível.

Há algo novo a pulsar. Ele entra no carro, gira a chave, acelera e sente o calmo palpitar no peito.

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