Fim. O relógio marcava quatorze horas. Um dia a menos, um
dia a mais. Franz apanhou o paletó e seguiu em direção à porta. Girou a
maçaneta e frouxou o nó da gravata. Entrou no carro, por alguns instantes
pensou no calor insuportável, mas preferiu deixar de lado, a brisa era fresca e
o carro andava rápido.
Chegou à sala de espera e já era aguardado. Alguns minutos
depois entrou na sala. Na mesma poltrona de sempre ele o aguardava. “Boa tarde”,
disse Franz. Com certa comicidade “Tarde boa e quente”, replicou. – Sente.
Concluiu.
- Há algo de novo; mudou o estofado?
- Analítico. Não quer sentar?
- Hm, é estranho, novo demais e diferente demais.
Franz sentou-se no chão, certamente uma mudança brusca como
aquela o havia causado, em algum nível, certa náusea.
- Além da mudança, notou mais alguma coisa nova?
- Ironicamente ver um cinzeiro num lugar onde não se pode
fumar é algo estranho, mas não quero falar nada pior.
- Você pode fumar, se quiser.
- Estou bem.
Num impulso quase defensivo, Franz acendeu um cigarro. “Não
vejo razão para trocar o estofado, sério mesmo. Qual era o problema com o
outro?”
- Você quer falar sobre isso?
- Não. Não, de forma alguma. Mas também não sei sobre o que
falar. Faz algum tempo, muito mudou, e nada mudou.
Com um sorriso único e frio, ele riu do comentário. “Sempre
tudo muda, mas nada muda!”.
- Pode soar engraçado, no entanto é verdade. E outra verdade
é que não sei por onde começar, simples seria sentar e observar como minha
cabeça está agora. Enfim, já sei, normalmente é fácil perceber o quão rápido as
coisas passam, os dias parecem mais curtos e a noite rende muito mais e em
diversos sentidos. Nem mesmo o mais vil e cruel sono é incapaz de abater a
presa. De alguma forma, quando o faz, em suas garras carrega o mesmo sonho.
Me vejo arrastado pelo menos corredor ladrilhado por
hexágonos perturbadoramente simétricos, mas a sensação não é ruim. Por duas ou
três vezes vislumbrei um quadro ao fim do corredor. Depois tudo escurece e
tenho o quadro nas mãos e, no entanto, não consigo decifrar o que me diz.
Há um casal sentado, não os reconheço, mas são familiares e
junto deles há uma criança.
-Você mergulha nesse corredor, é interessante a ausência do
medo, talvez. E o que acontece?
- Eu acordo e a sensação é boa.
- E é em sigilo silencioso?
- Não, é mímica, distorção, já é um reflexo, uma imagem a me
olhar e não a consigo ler, apenas uma poderosa forma onde o vermelho recobre a
parte superior, mas não me fere os olhos ou sentidos.
Existe algo dissonante na ação em si, não sei ao certo se
olho o quadro ou se, do quadro, me observam como quem aguarda o trem ou um
ônibus.
- Você se sente invadido?
- Não, é cíclico, mas não invasivo, complementar, em um sentido
mais amplo. Mesmo assim não é isso o que mais me apraz, existe algo a mais,
algo além do que há por si só, algo além de mim, tange o metafísico em essência
a engendrar o vislumbre em si enquanto forma renovadora.
Irrompe na matéria pulsante enquanto luz desbravadora,
acontece no mesmo tom carmesin do opulento crepúsculo, e se desfaz em pronto
divagar de si na forma dos mesmos tentáculos que lança a mim na escuridão.
Afaga a nuca com dedos mornos a embalar cabelos envoltos em
chamas. Nas chamas o brilho reluz na aurora do minuto a passar em ânsia. Existe
algo inexplicável, esse algo manter-se-á dessa forma. Vem sei não és dado aos
enigmas da alma e dos planos dados ao espírito.
Bem sei, mas é como adentrar um rio durante a madrugada
quente, onde as pedras sempre são banhadas por águas geladas e a alma acolhe o
frio de boa a pura vontade. Por pura e adorada vontade desfeita em flor a
deleitar-se no puro rio. E tudo desdobra-se em perfeito fluxo, tão perfeito
quanto o rio, como a natureza em si.
-Vejo que muito mudou, então. Mudou naquilo que tange o
conteúdo, isso é deveras importante, ainda mais ao falar de si sem interpor
barreiras diversas. É essa mudança que o impede de sentar-se senão no chão?
- Não! Esse estofado. Entrar aqui é como estar despido de
todas as defesas, é incompreensível conseguir repousar o corpo sem defesas em
um lugar desconhecido e estranho.
- Justo.
- Então, o que há de novo senão a renovação da esperança?
Eis à luz da nova aurora onde desfaleço pesadamente ao lado da própria ideia,
uma presença que, mesmo ausente enquanto princípio físico, completa de forma bela
e despudorada.
Por isso meu caminhar ébrio retorna ao ponto onde se enlaça
o recomeço, sei o aspecto denso dessa divagação, mas o que mais eu poderia
fazer além de falar de mim mesmo em uma perceira pessoa?
- Entendo.
- Pois é.
Aos passos silenciosos do relógio, Franz percebe seu tempo
chegando ao fim. Há algo além do mero caminhar de volta, estranhamente há um
novo brilho no sol, até o farfalhar das árvores é sonoramente mais aprazível.
Há algo novo a pulsar. Ele entra no carro, gira a chave,
acelera e sente o calmo palpitar no peito.